quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Dançando para não dançar - Paulo Coelho


Tudo se move. E tudo se move com um ritmo. E tudo que se move com um ritmo provoca um som. Isso está acontecendo aqui e em qualquer lugar do mundo neste momento. Nossos ancestrais notaram a mesma coisa, quando procuravam fugir do frio em suas cavernas: as coisas se moviam e faziam barulho.
Os primeiros seres humanos talvez tivessem olhado isso com espanto, e logo em seguida com devoção: entenderam que essa era a maneira de uma Entidade Superior comunicar-se com eles. Passaram a imitar os ruídos e os movimentos à sua volta, na esperança de comunicar-se também com essa Entidade: a dança e a música acabavam de nascer.
Quando dançamos, somos livres.
Melhor dizendo, nosso espírito pode viajar pelo universo, enquanto o corpo segue um ritmo que não faz parte da rotina. Assim, podemos rir de nossos grandes ou pequenos sofrimentos, e nos entregarmos a uma experiência nova sem medo. Enquanto a oração e a meditação nos levam até o sagrado através do silêncio e do mergulho interior, na dança celebramos junto com os outros uma espécie de transe coletivo.
Pode-se escrever o que se quiser sobre a dança, mas de nada vale: é preciso dançar para saber do que se está falando.
Dançar até a exaustão, como se fôssemos alpinistas subindo uma montanha sagrada. Dançar até que, por causa da respiração ofegante, nosso organismo possa receber oxigênio de uma maneira a que não está acostumado, e isso termina por fazer com que percamos nossa identidade, nossa relação com o espaço e o tempo.
Claro que podemos dançar sozinhos, se isso nos ajuda a vencer a timidez.
Mas, sempre que possível, é melhor dançar em grupo, porque um estimula o outro, e termina-se criando um espaço mágico, com todos conectados na mesma energia.
Para dançar, não é necessário aprender em academias; basta deixar que o corpo ensine - porque dançamos desde a noite dos tempos, e não esquecemos isso. Quando eu era adolescente, ficava com inveja dos grandes “bailarinos” da minha turma da esquina, e fingia que tinha outras coisas para fazer durante as festas - como ficar conversando, por exemplo. Mas na verdade eu tinha pavor do ridículo. Até que um dia uma menina, chamada Márcia, me disse na frente de todo mundo: - Venha.
Eu disse que não gostava; ela insistiu.
Todos do grupo ficaram olhando e, porque eu estava apaixonado (o amor é capaz de tantas coisas!), não pude recusar mais. Fiz um papel ridículo, não sabia seguir os passos, mas Márcia não parou. Continuou dançando, como se eu fosse um Rudolf Nureyev.
- Esqueça os outros e preste atenção no baixo - sussurrou ao meu ouvido. - Procure seguir o seu ritmo.
Naquele momento, entendi que nem sempre é necessário aprender as coisas mais importantes; elas já fazem parte da nossa natureza. Na juventude, a dança é um rito de passagem fundamental: experimentamos pela primeira vez um estado de graça, um êxtase profundo, mesmo que para os menos avisados tudo não passe de um grupo de rapazes e moças divertindo-se em uma festa.
Quando ficamos adultos, e quando envelhecemos, precisamos continuar dançando. O ritmo muda, mas a música é parte da vida, e a dança é a conseqüência de deixarmos que esse ritmo penetre em nós.
Continuo dançando sempre que posso.
Com a dança, o mundo espiritual e o mundo real conseguem conviver sem conflitos. Como disse alguém que não me lembro, os bailarinos clássicos ficam na ponta dos pés porque estão ao mesmo tempo tocando a terra e alcançando os céus.



(Texto de Paulo Coelho, publicado no jornal O Globo – 22/abr/2007).

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