Histórico do Zaar
Apesar do Zaar, uma cerimônia de transe do Norte da África e Oriente médio, ser tecnicamente proibido pelo Islã, ele continua a ser parte essencial dessas culturas.
O Zaar é melhor descrito como um "culto de cura" que usa tambores e dança em suas cerimônias. Também funciona como um compartilhamento de conhecimento e solidariedade social entre as mulheres dessas culturas tão patriarcais. A maioria de líderes de Zaar são mulheres, e a maioria de participantes também. Muitos escritores notaram que enquanto a maioria dos espíritos possuidores são masculinos, as possuídas são geralmente mulheres. Isso não quer dizer que os homens não contribuem para as cerimônias de zaar: eles podem ajudar com os tambores, na matança dos animais rituais, ou podem eles mesmos ser um marido ou parente requisitado para fazer oferendas ao espírito possuidor. De fato, é talvez uma tendência triste que, em culturas onde o zaar é mais visível, haja uma tendência maior de os homens co-participar das cerimônias, e se tornarem líderes de zaar.
Susan Kenyon nota que, na verdade, tem ocorrido uma proliferação de grupos de culto na República do Sudão, e um aumento dramático no tipo de demanda feita no culto. Ela atribui isso em parte à uma situação econômica pobre, que encoraja os homens a ir para fora do país à procura de emprego, deixando as mulheres como as verdadeiras chefes de casa, com todo o stress resultante.
As cerimônias Zaar se estabeleceram no Sudão nos anos 1820. Foram ilegalizadas pela lei de Shari'a em 1983, mas, ao invés de diminuir, parecem ter aumentado. Elas dão à mulheres uma forma única de consolo em sociedades patriarcais rígidas. O próprio Islã sempre acreditou na existência de "espíritos", que eles chamam de "jin". Além disso, o zaar foi oficialmente banido do Sudão desde 1992, mas os tambores ainda soam - possivelmente, diz Kenyon, devido ao suporte de esposas de homens influentes.
A possessão no zaar é normalmente herdada. É também 'contagiosa' e pode vir a qualquer hora. Diriye Abdullahi, nativo da Somália, diz que o zaar é basicamente uma dança de espíritos, ou dança religiosa - resquício das antigas deidades africanas, uma variante do que aqui no ocidente chamamos de "vudu". As antigas deidades africanas são chefiadas por duas figuras: Azuzar (o masculino, assoc. a Osíris) e Ausitu (o feminino, assoc. a Ísis). Ausitu é ainda celebrada e presenteada com oferendas por mulheres grávidas para que lhes dê um parto seguro. Ele o descreve como uma dança ritual que é mais observada por mulheres, especialmente mais velhas. Isso corresponde à prática das religiões africanas mais antigas, onde as mulheres mais velhas eram as sacerdotisas. Ele sustenta que mulheres mais jovens, especialmente não-casadas, não são tidas como "merecedoras da visita do espírito de Zaar, que escolhe a residência na pessoa que quiser."
Diriye não acha um sacrilégio adultos dançarem o zaar, mesmo os não possuídos. No Egito, diz, é mais dançado pelas pessoas que vivem nas áreas de vilas do sul, que foram menos expostas aos muitos invasores que vieram, através dos séculos, da Grécia, Roma e Oriente Médio, culminando nos árabes mulçumanos. Ele acrescenta que o maior número de praticantes são, hoje, encontrados no Sudão, Etiópia e Somália - lugares que mantêm tradições já desaparecidas no Egito. O zaar, hoje, é praticado mais para relaxamento e cura espiritual para pessoas estressadas ou com problemas. O animal de sacrifício pode ou não fazer parte dessa cerimônia moderna.
A Cerimônia
"Cada mulher movida pela pulsação do tambor... O movimento das mulheres crescendo em intensidade e velocidade, seus olhos meio fechados, ela parecia não notar nada ao seu redor, abandonando completamente a si mesma para a dança. Seus movimentos fluíam livremente de dentro para fora, ganhando força e velocidade à medida que ela completava o círculo ao redor do altar imponente onde os ajudantes estavam... até que, finalmente, jogava seus braços para cima e estava prestes a cair, mas a Kodia a guiou para o chão..." (descrição de uma cerimônia de Zaar egípcia).
"Fumar, dançar ousadamente, se soltar, arrotar e soluçar, beber sangue e álcool, vestir roupas masculinas, ameaçar homens publicamente com espadas, falando alto sem pensar em etiqueta... esses dificilmente seriam comportamentos das mulheres Hofriyati, para quem dignidade e justeza são valores importantes. Mas no contexto do Zaar são comuns e esperados."
O drama de uma cerimônia de zaar cativa nossa imaginação rapidinho, mas é preciso lembrar que funciona, pois atua dentro de um cenário cultural específico, com requerimentos muito específicos. Como um culto, os grupos de Zaar têm um líder e os membros devem ir a seções regularmente. Pode haver rituais de zaar públicos ou privados; em um ritual privado apenas os familiares próximos podem estar envolvidos.
A líder pode ser chamada de "Kodia" (Egito), Shaykha (Sudão) ou "Umiya" (Sudão), dependendo da região. A própria líder é possuída. Ela tem que entrar em acordo com seu "Jin" ou espírito para estar pronta a ajudar os outros. A liderança é normalmente passada de mãe para filha ou por membros femininos da família. Homens não podem herdar a possessão, mas podem reivindicar terem sido "chamados".
O zaar egípcio é normalmente feito num quarto amplo com um altar. Em qualquer país, é importante que o espaço de uso doméstico seja separado do espaço sagrado, ou do lugar de sacrifício para o zaar. O altar é coberto com um pano branco e empilhado de castanhas e frutas secas. A Kodia e seus músicos ocupam um lado do quarto, e os participantes o resto dele. Os convidados devem contribuir com uma quantia de dinheiro de acordo com sua posição. Ter uma cerimônia de zaar pode ser muito lucrativo, mas entende-se que o líder de zaar é alguém a quem as mulheres podem recorrer em tempos de necessidade - assim ele serve também como uma sociedade solidária na qual os membros tanto dão como recebem ajuda.
A mulher para quem o zaar é preparado pode vestir-se de branco, geralmente uma galabiya de homem, ou saia. Ela usa henna nas mãos e corpo, e kohl nos olhos. Ela também pode ser fortemente perfumada, como os convidados. Duriye Abdullahi, nativo da Somália, diz que perfumes (especialmente olíbano) são as oferendas mais comuns aos espíritos do zaar. No começo das cerimônias, passa-se um turíbulo entre os convidados, para purificarem seus corpos.
Espera-se que a Kodia seja uma cantora treinada, que conheça as músicas e ritmos de cada espírito. Ao cantar a música de um espírito e observar as reações, ela pode diagnosticar que tipo de espírito baixou e como "tratá-lo". Os instrumentos musicais usados são o tar, um tipo de pandeiro, e a tabla. O número de "ajudantes" vai de 3 a 6; eles dão o apoio rítmico. Durante as cerimônias de zaar, os vários espíritos são invocados por sua própria batida de tambor característica (ou "linha"). A Kodia também tem um acervo de roupas, que passa ao possuído a fim de acomodá-lo.
Se o sacrifício animal é usado, deve ser com uma galinha, pombo, ovelha, ou até mesmo um camelo, se a mulher for rica. Em todo caso, prover algum tipo de comida ou refeição é parte essencial da cerimônia. Dizem que os espíritos etíopes gostam de café. Espíritos não-mulçumanos podem exigir bebidas alcoólicas, enquanto espíritos femininos podem preferir bebidas doces, como refrigerante. No Sudão, nas áreas onde sacrifício animal é considerado necessário, o restabelecimento do paciente não é considerado completo até que a refeição do sacrifício é consumida na noite final. Ela geralmente consiste em carne, pão, arroz e caldos.
O Zaar não é um "exorcismo", como geralmente as pessoas o descrevem, porque o espírito é acomodado e conciliado; ele não é exorcizado. À paciente é aconselhado "ser continuamente atenciosa com seus espíritos, fazer as tarefas diárias que eles requerem, evitar poeira, e fugir de emoções negativas". Falhar nisso pode resultar numa recaída. O fato desse conselho ser válido para mulheres ocidentais modernas comprova a natureza tão prática da experiência do zaar.
O que podemos aprender do Zaar?
O ritual de Zaar é uma experiência purificante, que funciona com tanta eficácia para as mulheres dessas culturas quanto à psicoterapia na cultura ocidental. Ele envolve vários aspectos críticos que contribuem para seu sucesso como terapia: o paciente é o centro das atenções e recebe ajuda e atenção de seus amigos e parentes, sua experiência e sentimentos são reconhecidos como válidos. Como a dançoterapeuta Claire Schmais explica, "É baseado na comunidade, seguidores e membros não são mandados embora para se curar... cria um senso de comunidade enquanto cura, aceitando o indivíduo dentro da comunidade."
O zaar proporciona uma experiência multissensorial com visões, sons e cheiros. A partilha ritual de comida cria companheirismo em toda cultura e época. Então, é importante entender esses rituais no contexto da experiência total. Os principais elementos da experiência do zaar podem ser usados por mulheres na nossa cultura para criar experiências de dança mais significativas, no contexto ritual que preferirem. Isso poderia ser feito no contexto religioso ou mesmo leigo.
Pelo "mover-se junto", um senso de proximidade cresce entre membros do grupo. Isso é verdade, os participantes sendo treinados em dança ou não. Também, a experiência de ser o centro das atenções é, em si, uma experiência terapêutica, quando cercado por amigos.
"Ritual" pode significar algo simples como queimar incenso, pôr flores num quarto, ou acender velas. Qualquer um que já se apresentou em público pode estimar quão importante é "montar o palco", criar um humor adequado.
Vestir fantasia já é comum para todas nós como parte do que faz da dança uma experiência especial. Algo tão simples quanto usar lenço de quadril e véus para treinar dança pode incrementar a experiência para não-dançarinas. Como dançarinas, também podemos testemunhar o efeito hipnótico criado quando os ritmos certos de tambor são usados. A função da "líder" também é importante, porque mantém o grupo norteado, e tira a preocupação de 'o que fazer a seguir' dos outros. Os tambores também servem para focar a atenção de todos no aspecto ritual do que está acontecendo, e definir o humor e fluência do evento com ritmo.
Comer junto é uma maneira familiar de terminar o ritual que une as pessoas, e ajuda cada um a sentir que estão sendo "nutridos" e apreciados.
Aspectos Práticos
Quanto à "coreografia", movimentos tradicionais de zaar são jogadas de cabeça e gingadas. É importante estar ciente de que esses movimentos podem ser perigosos, principalmente para pessoas com problema de pescoço ou de ombro. A coisa mais importante é relaxar no movimento, e não tentar controlá-lo. Relaxar e deixar o peso da cabeça mandar é a chave para não se machucar. Ficar tenso e com medo do movimento pode muito mais levar a um machucado. Se você fizer por muito tempo terá um torcicolo, mas isso é devido ao trabalho muscular.
Fonte: Me'ira, The Zaar Revisited
Tempestade Lunar
(Viviane Braga)
Marcadores: Danca do Ventre