Atena: mulher guerreira no mundo
O mito do nascimento de Atena
Um Hino Homérico narra a história do nascimento de Atena, ressaltando sua íntima ligação com o Pai Zeus.
Canto aqui sobre Palas Atena, deusa célere de olhos radiantes, mente ágil e coração inflexível, virgem casta e poderosa, protetora da cidade, Tritogenéia. Zeus, ele mesmo, em sua sabedoria fê-la nascer de sua santa cabeça, e ei-la já ataviada em armadura de guerra, reluzindo a ouro, enquanto todos os mortais, reverentes e aterrorizados, contemplam-na. Saltou logo da cabela imortal em frente ao Zeus porta-égide, brandindo sua afiada lança. E o sublime Olimpo estremeceu terrivelmente diante do poderio da deusa dos olhos radiantes. E as terras ao redor soltaram um gemido de pavor enquanto as ondas negras das profundezas fervilhavam. Mas, subitamente, o mar serenou; o glorioso filho de Hipérion fez estacar seus cavalos céleres e a donzela Palas retirou a armadura divina de seus ombros imortais. Zeus, em sua sabedoria, rejubilava-se. Salve, ó filha de Zeus, o porta-égide! Eu me lembrarei de ti, e também de outro cântico.”Hino homérico a Atena
Uma versão ainda mais antiga do mito, a de Hesíodo, acrescenta uma dimensão importante: Atena fora originalmente gerada numa deusa maternal, Métis:
Zeus engravidara Métis, a Titã. Temendo um oráculo que decretara ser um menino que iria depô-lo, Zeus engodou Métis e a engoliu. Mas a criança continuou a crescer dentro de Zeus até que, por fim, ele veio a sofrer de dores de cabeça tão atrozes que convocou Hefaístos, o ferreiro, para rachar-lhe o crânio com um machado. Com um grito de batalha selvagem, Atena saltou para fora, inteiramente armada.
Para conhecer Atena hoje
É fácil identificar Atena no mundo moderno, pois em todos os sentidos da palavra, ela está no mundo: editorando revistas, dirigindo os departamentos de estudos femininos nas universidades, entrevistando personalidades na televisão, organizando viagens para averiguar o que de fato está acontecendo na Nicarágua, produzindo filmes, contestando os legisladores de sua cidade.
A mulher-Atena está sempre em evidência por ser extrovertida, prática e inteligente. A princípio os homens geralmente ficam um tanto intimidados com ela, visto que ela reage aos lances sexuais normais e é capaz de colocá-los contra a parede em qualquer discussão intelectual. Mas quando conquistam seu respeito, a mulher-Atena pode ser a mais leal das companheiras, uma amiga para o resto da vida e uma fonte generosa de inspiração. compreensivelmente, os gregos chamavam Atena de “companheira dos heróis”.
Que diferença de Ártemis, uma deusa igualmente independente mas muito mais acanhada, que rejeita o mundo buliçoso da cidade em prol dos lugares silvestres e naturais: os bosques, as montanhas ou o mar! Sendo a energia de Atena praticamente toda extrovertida, suas preocupações envolvem basicamente o mundo: pessoas e idéias, o burburinho dos mercados, a arena do debate político, a criação e implementação de reformas sociais. Como é companheira dos heróis, tende a ser sensível às relações entre os homens e é capaz de ajudar a tornar os grupos coesos. O espírito de camaradagem que os guerreiros gregos fantasiavam em seus mitos é hoje uma realidade em carne e osso, com Atena trabalhando ao lado dos homens nos negócios, na política ou na educação.
Na realidade, a antiga capacidade de Atena manter coesa a polis ateniense sob uma causa ou ideal comum manifesta-se hoje de uma maneira inteiramente nova, que vai lentamente transformando a sociedade contemporânea. Não mais apenas um símbolo de criatividade intelectual ou social, seu espírito encarna-se em toda parte nos milhões de mulheres que hoje trabalham em todos os níveis da sociedade. Até recentemente, nossa sociedade patriarcal oferecia poucas oportunidades para Atena se desenvolver e se manifestar por inteiro. Houve casos notáveis, mas bastante raros, de mulheres que encarnaram Atena em sua totalidade – Joana D’Arc, a rainha Elizabeth I, Eleanor da Aquitânia – embora estas duas últimas tenham sido assistidas pela energia poderosa de Hera. E até os séculos XVIII e XIX, quando surgiram algumas escritoras e reformadoras, Atena raramente poderia ser mais do que um emblema militar, como a Britânia da Inglaterra ou a Liberdade dos Estados Unidos ou a Mariane da França.
Todavia, mesmo que as mulheres não pudessem vir à tona para assumir seu lugar ao lado dos heróis na Grécia antiga, como a Atena dos mitos, o anseio para que isso acontecesse deve ter existido. O mito das amazonas, uma sociedade de ferozes mulheres guerreiras vivendo quase que inteiramente sem homens, pode ser reconhecido como uma expressão dos anseios frustrados da energia de Atena – uma energia que, nas amazonas, fundiu-se com o espírito de se sua irmã independente, Ártemis, que personifica o amor pela vida silvestre. Entretanto, o desabrochar político e intelectual das mulheres pela vem sendo tal desde o começo do século XX, que pode bem representar o renascimento de Atena, há tanto tempo impedido pelo patriarcado.
A consciência de Atena hoje
Embora a batalha não tenha sido vencida em nenhum front, hoje Atena é muito menos uma voz solitária clamando no deserto do que foi uma solitária George Eliot ou uma sufragista contestadora como a senhora Pankhurst. Já não é preciso uma fortuna pessoal nem uma fortitude incomum para uma mulher publicar um livro ou influenciar a política exterior. Os dias de mulheres-Atena extenuando-se sem reconhecimento nos subúrbios ou nos sertões, ocupadas em escrever romances que jamais serão publicados e sendo tiranizadas como as heroínas de Balzac, de Ibsen e de Henry James estão finalmente chegando ao fim.
O tremendo aumento da população alfabetizada e a criação de escolas mistas permitiram que qualquer mulher-Atena que assim o desejar ingresse no “sistema” e o modifique. Tantas mulheres estão de fato aceitando esse desafio heróico que toda uma nova psicologia da mulher inteligente e criativa que atua no mundo precisa ser escrita. Estamos convencidos de que a inspiração para essa psicologia pode ser encontrada numa reflexão sobre as imagens de sabedoria, coragem heróica e criatividade prática que a feminilidade transcendente de Atena nos proporciona.
A mulher-Atena de hoje já demonstrou amplamente que é capaz de ser uma excelente política, organizadora social, administradora ou pesquisadora. Seu espírito de luta permite que esteja na vanguarda das novas iniciativas, seja no mundo dos negócios, da educação ou da assistência social. Ela é incansável, corajosa e prática. Partilha com os homens as virtudes heróicas da lealdade, da perseverança bem-sucedida e empreendedora. os homens naturalmente ficam um pouco pasmados com sua competência e com a agudeza de sua mente; acostumados a ser procurados para dar conselhos, estão sendo obrigados a reconhecer a independência e, muitas vezes, a superioridade da mulher-Atena contemporânea. Pois, embora trabalhe junto com eles, não é uma mera auxiliar fiel; ela pode e deve exigir respeito, igual responsabilidade e autonomia.
A independência da mulher-Atena em relação aos homens é uma qualidade que ela partilha com sua irmã Ártemis. No mito grego, as duas deusas portam armas e nenhuma delas tem um amante ou consorte. Na realidade, ambas eram consideradas deusas virgens, o que no mundo antigo significava simplesmente não casadas, e ambas personificavam atributos masculinos e femininos em suas personalidades arquetípicas. o fato de nem Atena nem Ártemis terem se casado significa, em termos psicológicos, que integraram o masculino dentro de si mesmas e que não precisam de um homem como parceiro ou consorte para refletir ou apresentar qualidades do sexo masculino como agressividade, racionalidade ou autoridade. No mundo moderno, visto que ambas já resolveram tantas coisas por si mesmas, depender de um homem seria quase incompreensível. os motivos de hera precisar de um companheiro ou de Afrodite tolerar um amante imaturo tendem a ser um mistério para Atena.
Se Atena vier a ter um relacionamento, terá de ser um homem que reflita sua própria independência andrógina, um homem com um componente feminino vigorosamente projetados unto com ela ou relacionar-se com ela num plano intelectual. precisará, sobretudo, ter a autoconfiança necessária para não ameaçar a autonomia e as ambições dela.
Todavia, apesar de sua força, de eu brilho e de sua independência, há um paradoxo na imagem tradicional de Atena, a de uma donzela vestindo uma armadura. Parece-nos que quanto mais energia a mulher-Atena dedica a desenvolver-se como alguém bem-sucedido no mundo graças a uma couraça protetora, mais ela oculta sua vulnerabilidade de menina. De modo que, em sua androginia, Atena esconde um conflito, uma tensão não resolvida entre seu eu exterior “duro” e aquela parte de si que permanece oculta e impossibilitada de se expressar – podendo tornar-se fonte de grande insegurança no que tange a encontrar sua identidade feminina integral. Isso foi algo que constatamos em praticamente todas as mulheres-Atena que conhecemos e com quem trabalhamos: é o que chamamos de “chaga de Atena”.
Atena na mitologia e na religião da Grécia antiga
Quem era Atena para os gregos antigos?
Por sua proximidade com o deus supremo – seu pai Zeus, a deusa Atena ocupa um lugar de eminência no panteão grego. Como Palas Atena, a Donzela Guerreira e padroeira da cidade de Atenas, ela veio a representar os mais elevados ideais espirituais e as mais sublimes criações do patriarcado grego do século C a.C. Seu templo, o Paternon (“pathernos” significa “virgem”), ainda domina a Acrópole ateniense, embora sua gigantesca estátua com dardo, lança e elmo tenha há muito desaparecido. Os estudiosos discordam quanto a suas origens; a maioria acredita que ela descenda de uma deusa marcial miceniana, cuja função era defender as cidadelas em tempo de guerra, embora outros afirmem que seu nome significa senão a própria Grande Mãe.
No entnato, o mito mais popular de seu nascimento deixa claro que Atena foi mais tarde considerada verdadeiramente filha de seu pai. Uma das deusas maternais mais antigas, a Titã Métis, ficou prenhe de Zeus, e este, temendo ter um filho que viesse a depô-lo, engoliu essa potestade por inteiro, posteriormente, uma deusa guerreira já adulta e inteiramente armada foi tirada da cabeça de Zeus.
Nesse mito, há por certo uma alegoria política do modo como as tribos invasoras mais patriarcais, que adoravam o Deus Pai, Zeus, assimilaram os cultos matriarcais que os precederam. mas o nome dessa deusa anterior, Métis, também é bastante sugestivo, em razão do modo como os homens assumem para si certos poderes que não são necessariamente seus por direito de nascença. A palavra “metis” significa “sábio aconselhamento”, o atributo pelo qual Atena é tida em maior apreço no Olimpo. Ela confidencia a Ulisses: “Dentre todos os deuses, sou afamada por minha inteligência [metis] e sagacidade (Odisséia, livro 13). Hesíoso chega a considerá-la “igual ao pai no vigor e prudência da sabedoria” (Teogonia, 896).
Atena, na verdade, foi a única habitante do Olimpo sem uma verdadeira mãe; assim ela permanece como representante suprema da sabedoria do pai, tendo nascido simbolicamente do cabeça de Estado do Olimpo. nesse sentido, é a restauradora da sabedoria (metis) que Zeus digeria e transformara, mas que não obstante, precisava manifestar externamente sob a forma feminina. Atena é o que Jung chamaria de inspiração sublime da tremenda fecundidade intelectual e espiritual que produziu o teatro, a filosofia, as instituições políticas e as artes excelsas que associamos à Idade de Ouro de Atenas.
Se a relação de Atena com a vida da cabeça é enfatizada, a sua ligação com seu corpo feminino recebe o tratamento oposto. Tudo o que houver de meigo e feminino em sua feminilidade de donzela permanece oculto sob várias camadas de couraças protetoras; e, quase como para ter a certeza de que os homens entenderão a mensagem de “manter distância”, ela traz junto a seu peitoral a hedionda cabeça da Górgona, a Medusa. Essa medonha relíquia, coberta de serpentes veio de uma aventura que ela inspirou em Perseu, um de seus heróis protegidos, incumbido da tarefa de matar essa monstruosidade feminina que homem algum podia vislumbrar sem se transformar em pedra.
Dada sua preferência pela companhia de jovens heróis e guerreiros ocupados em guerrear e conquistar, Atena seria uma verdadeira moleca se fosse mortal. porém, na realidade, é o heroísmo e não a índole bélica que ela de fato admira, como evidencia sua aversão por Ares, o deus da guerra da Ilíada. Perseu e Herácles (Hércules) lhe são particularmente queridos, mas é Ulisses, o homem “de muitos aconselhamentos” (polymetis), que ela mais ama. Ama, isto é, no sentido de uma amizade fraternal intensa, pois a deusa Atena rejeita o casamento e qualquer forma de sexualidade. A deusa do amor, Afrodite, não tinha poder sobre ela, diz um hino homérico a Afrodite. De modo que, nos épicos de Homero, encontramos Atena como a leal, sempre presente e inspiradora companheira espiritual dos grandes heróis, instando-os à argúcia e aguçando-lhes a inteligência prática.
Assim como na guerra, também na paz é a inventividade prática que ela mais inspira. Em Atenas, ela tornou-se a padroeira dos tecelões, dos artífices metalúrgicos e dos carpinteiros – na realidade, de todos os artesãos. À medida que a cidade e seus domínio e colônias iam se tornando mais poderosos, Atena passou a ser cada vez mais uma força espiritual, ao lado de seu pai Zeus, por trás da expansão dos primórdios da civilização grega.
Outros aspectos
- Apesar da determinação de nossa cultura em programar papéis sexuais estereotipados nas crianças – bonecas para meninas, revólveres para meninos – os principais traços de Atena, e particularmente sua qualidade andrógina, podem ser observados quando seu arquétipo se manifesta com intensidade em meninas ainda pequenas. Jovens e inteligentes meninas-Atena logo aprendem a dominar a linguagem – e a argumentar: seu ego forte as torna briguentas e combativas quanto brincar com os meninos, aceitando suas brigas e brincadeiras violentas tanto física quanto verbalmente. Assim como sua irmã igualmente andrógina, Ártemis, ela se orgulha de seus modos de rapaz. porém, sendo mais competitiva e mais argumentativa do que Ártemis, seu modo bem poderia ser: “Tudo o que você consegue fazer eu consigo realizar melhor”.
- Competições e disputas tornam-na apensa mais rija e obstinada; ela logo supera qualquer senso de inferioridade que possa ter diante dos meninos, firmando já a autoconfiança que lhe será tão útil e proveitosa na fase adulta. E, embora aprecie vencer tanto quanto qualquer garoto, não sente necessidade de dominar pelo simples prazer de dominar; o papel de líder é cobiçado por sua irmã ainda mais rija e obstinada, Hera. Em pleno controle de seus sentimentos, a jovem Atena hesitará em chorar para conseguir o que quer e, a menos que haja uma presença igualmente poderosa de Afrodite em sua psique, jamais recorrerá à sedução para atingir seus objetivos.
- A excepcional inteligência da jovem Atena muitas vezes se fará notar em seu extraordinário ouvido para a língua, e ela absorverá um vocabulário muito além do normal para sua idade. Ela adora palavras, jogos de palavras e discussões. Na realidade, adora sempre ter a última palavra. mais tarde, irá perceber que a capacidade de brandir palavras pode ser um de seus instrumentos mais poderosos, capaz de ser usado como uma verdadeira arma de combate em profissões como direito, jornalismo e advocacia política.
- A adolescência e o início da fase adulta podem ser momentos de considerável caos e confusão no que tange à identidade sexual de Atena. Ela já está caminhando rumo ao mundo paternal em que terá um dia de sobreviver, de modo que talvez se sinta mais em sintonia com a mentalidade do pai e dos irmãos do que com as artimanhas do namoro e as últimas novidades da moda que tanto fascinam Afrodite. Como é capaz de vencer facilmente um homem no plano intelectual, ela muitas vezes subestimará as formas mais tradicionais de namoro, surpreendendo-se quando a paixão mental de seu acompanhante se tornar de repente física. A sexualidade da mulher-Atena pode ser bastante espontânea e natural, mas é igualmente provável que mantenha uma certa inconsciência de seu próprio corpo. A despeito de todas as couraças de seu ego, de sua afinidade com os homens e de suas idéias libertárias, ela pode ser extremamente acanhada até adquirir mais experiência. Essa é a “donzela” que ela carrega dentro de si.
- Por toda a vida, haverá sempre um certo grau de reserva na sexualidade da mulher-Atena (vale lembrar que estamos falando do tipo Atena “puro”, não da mulher que também se move à vontade no mundo de Afrodite). Atena, arquetipicamente falando, é uma virgem. Apesar de toda a sua experiência de mundo e savoir faire, sua sexualidade enquanto mulher permanece relativamente indistinta. Tanto de sua libido foi dedicado à atividade mental e à extroversão que o corpo e as necessidades mais profundas do corpo receberam menos do que lhes seria devido. Ela pode achar que tudo vai indo muito bem na cama, mas às vezes haverá uma falta de verdadeira satisfação orgásmica, ou talvez venha a padecer de penosas infecções, tumores ou problemas menstruais 0 que tratará como problemas estritamente físicos.
- O casamento de uma mulher-Atena será frequentemente tempestuoso enquanto ela não resolver o que realmente deseja da vida e não parar de descarregar suas incertezas e vulnerabilidades secretas (a donzela oculta sob a armadura) sobre o companheiro. Ela irá digladiar-se com ele, competir com ele e muitas vezes desprezá-lo por não ser tão rijo e obstinado quanto ela. Ficará enfurecida com o fato de ele receber todos os lauréis tradicionais e ainda querer suas congratulações e solidariedade. Visto que se exigiu que o homem seja um super-herói entre os vinte e os quarenta anos, ele também espera ser maternalmente consolado e mimado pela esposa quando seu ego se fere. Mas nenhuma outra atitude seria capaz de despertar uma fúria homicida numa esposa-Atena, que desejava um companheiro-de-armas, um parceiro de treino para mantê-la em boa forma para a luta, alguém como seus irmãos quando era garota. Em vez disso, ela se vê diante de um choramingas que se retrai na terapia, foge para religiões orientais ou busca refúgio em relações extraconjugais lamuriando-se: “Minha esposa não me entende”.
- O mito grego nos diz que Atena nasceu da cabeça de Zeus e, segundo Ésquilo, ela teria dito: “Estou incisivamente ao lado do meu pai”. É praticamente impossível falar sobre Atena no mundo moderno sem tratar de seu relacionamento com os pais e com o mundo paternal. Mas essa não é uma tarefa fácil, pois a mulher-Atena hoje se orgulha de ser independente das estruturas da sociedade patriarcal e tende a se sentir insultada com a simples idéia de que talvez traga dentro de si algo de um sistema tão degenerado. É isso que acontece com muitas mulheres-Atena feministas. Mas se tentarmos examinar com isenção o arquétipo de Atena, ficaremos impressionados com duas facetas distintamente masculinas de sua personalidade: o amor do pai e amos dos heróis, que ela traz dentro de si como partes fundamentais da sua psicologia. Se os entendermos simbólica e não literalmente, esses amores nos dizem muito a respeito dela: o pai representa seus esforços mais elevados em busca da realização intelectual e espiritual, e ideal que ela busca em seu mundo, enquanto a consciência “heróica” representa a maneira de agir pela qual ela busca atingir essa meta.
- O que Atena busca aprender e imitar não é apenas o comportamento de seu pai biológico, por mais importante que possa ser o papel dele, mas sim o princípio paterno. É do “bom pai” arquetípico que ela busca ser filha, daquelas qualidades se Zeus que o rei dos deuses representava quando agia da maneira mais sublime: sabedoria, justiça, governança, responsável, justo aconselhamento, bondade, proteção, magnanimidade, orgulho natural e dignidade. Essas são todas qualidades “superiores” e, portanto, espirituais e intelectuais – sendo coerente que provenham da cabeça do deus dos céus.
- Só quando afastamos do plano biológico o amor de Atena pelo pai é que começamos a reconhecer partes essenciais de seu tipo de personalidade. isso não significa negar que Atena possa ter uma admiração fortíssima por seu pai carnal; mas será algo incidental, não uma causa direta de seu idealismo. Muitas mulheres-Atena nascem com um pai fraco ou inexistente, mas tão grande é o anseio delas que tão logo a educação lhes descortine novos horizontes intelectuais elas se fixarão em algum pai cultural, como Gandhi, Marx ou Jesus.
- Uma vez no mundo, depois de haver saído de casa e partido, digamos, para uma cidade grande ou para a universidade – ambos domínios de Atena, ela se vê diante de novos desafios a seu crescente senso de independência e identidade pessoal: encontrar emprego, pagar o aluguel, manter um carro, administrar uma conta bancária e, é claro, descobrir como continuar avançando. Assim como os jovens rapazes de outrora iam tradicionalmente para a cidade grande tentar a sorte, também ela acaba aprendendo toda espécie de truques para sobreviver e descobrindo como o sistema funciona.
- De acordo com a psicologia junguiana, depois de o ego que aspira ao heroísmo romper com a mãe e com o lar, tornando-se capaz de atuar sozinho no mundo paternal, surge um outro desafio, ainda mais difícil, uma situação que Jung identificou como a matança do pai. Na psicologia de um jovem rapaz, isso muitas vezes pode se caracterizar na decisão de deixar um emprego seguro numa grande empresa e iniciar seu próprio negócio, ou na decisão de tentar chegar a uma posição gerencial mais elevada quando o cargo vagar. É evidente que a mulher-Atena que também estiver ascendendo em alguma hierarquia empresarial ou política acabará por ser ver diante de uma escolha semelhante. Mas o desafio pode se apresentar igualmente no âmbito intelectual, por exemplo, a publicação de um livro radical que lhe custará o apoio acadêmico mas transformará seu nome numa voz própria por legítimo direito. Essas, além de desafios políticos mais diretos a um sistema, a uma hierarquia ou a uma visão de mundo já sedimentada, são todas versões do processo simbólico de matar o pai para ela se tornar plenamente ela mesma.
- Há inequívocos indícios de que as mulheres levadas a trabalhar com vítimas de estupro ou de outros tipos de violências foram elas próprias vítimas de pais abusivos. Mas isso de maneira alguma explica a grande proporção de feministas hostis às instituições patriarcais da sociedade. Pelo contrário, em nossa prática psicoterapêutica, verificamos que muitas Atenas radicais se enfurecem igualmente com seus pais por usa passividade e por não lhes terem oferecido exatamente o mesmo tipo de apoio que as mulheres executivas com pais fortes obtiveram tão facilmente.
- O fato de uma encarnação radical de Atena estar irrompendo com tanta força na sociedade ocidental pode significar que pela primeira vez é a filha e não o filho, que irá derrubar o princípio paterno sinalizando o fim do patriarcado.
- A chaga de Atena: a negação do corpo. O mito grego do nascimento de Atena nos diz que sua verdadeira mãe foi Métis, uma Titã pertencente à raça pré-olimpiana de divindades que foram posteriormente suprimidas pelo patriarcado. O ato de engoli-la foi a maneira astuta de Zeus se assegurar de que não teria um filho para destroná-lo (um constante pesadelo patriarcal) e, ao mesmo tempo, de incorporar em sia a “sabedoria” dela – pois é isso que significa a palavra grega metis. Se Métis era uma Titã, então era uma deusa do período matriarcal (…) e, portanto, sua “sabedoria” é nada mais nada menos do que a própria consciência matriarcal proclamando o eterno ciclo místico de nascimento e morte, mudança e transformação. Como Deméter foi a única deusa que sobreviveu intacta com o conhecimento iniciático desses mistérios, ela é a que mais se aproxima de Métis. Psicologicamente falando, Métis/Deméter representa a função maternal que foi separada em Atena. Essa função ausente nela foi substituída por um acalentar espiritual do pai – mas de um pai em guerra psíquica com o princípio materno. Aquilo de que Atena está mais distante e de que ela mais são, justamente, a natural meiguice protetora da mãe, uma maior atenção às necessidades básicas do corpo e um amor incondicional. Todas essas funções brotam espontaneamente em Deméter e, é de se presumir, na sabedoria há tanto esquecida de Métis. Mas será o destino de Atena ter que se identificar com o pai para firmar sua própria identidade no mundo? Sua tragédia é quem quanto mais agir assim, mais inevitavelmente incorporará em si a negação dele do princípio materno, amarguradamente alienando-se dos aspectos maternais de sua própria identidade.
- Jung descreveu em termos vívidos a que extremos dolorosos a rejeição inconsciente da mãe pode levar a mulher-Atena. Suas palavras merecem ser citadas, pois resumem as diversas manifestações arquetípicas que a supressão de tudo aquilo que é instintivo e corporal pode provocar quando a mulher despreza os aspectos de Deméter e/ou Afrodite de sua natureza. Ele chama essa negação de “exemplo supremo do complexo materno negativo”, dizendo o seguinte:
- “O lema desse tipo é “qualquer coisa, desde que não seja como mamãe”. [...] Essa espécie de filha sabe o que não quer, mas em geral está completamente desnorteada quanto ao destino que escolheria para si. Todos os seus instintos estão concentrados na mãe sob a forma negativa da resistência e, portanto, não têm utilidade alguma para construir sua vida. [...] Todo processo instintivo depara-se com dificuldades inesperadas: ou as obrigações maternais são insuportáveis, ou as exigências da vida de casada são recebidas com impaciência e irritação. [...] Resistência à mãe enquanto útero é algo que tende a manifestar-se em distúrbios menstruais, incapacidade de conceber, aversão à gravidez, hemorragias e vômitos excessivos durante a gestação, abortos espontâneos, e assim por diante. A mãe, enquanto matéria, talvez esteja por trás da impaciência dessas mulheres com os objetos, da maneira canhestra de elas lidarem com instrumentos e utensílios de cozinha, e de seu mau gosto em se vestir.” (“Aspectos psicológicos do arquétipo materno”, pp. 24-25).
- O uso excessivo da mente pode muitas vezes ser o principal mecanismo de defesa de Atena. mesmo que esteja seriamente propensa a examinar-se a fundo, ela acabará escolhendo grupos ou terapias que reforcem seus preconceitos intelectuais com mais conversas e discussões.Uma Atena sagaz pode enganar até o melhor dos psicoterapeutas por anos com uma vasta gama de soluções aparentes e um simulacro de melhoria sem jamais se confrontar com seu eu corporal. (…) Até mesmo as mais bem-sucedidas e carismáticas mulheres-Atena revelarão em terapia o quanto na verdade se sentem inseguras e ansiosas por dentro, a despeito de tudo o que realizam externamente e de todo o reconhecimento que recebem. (…) Eis aqui o paradoxo que nos leva ao cerne da chaga de Atena: quanto mais ela encobre a donzela vulnerável, mais impetuosa se torna sua armadura protetora e mais inconsciente estará dela O âmago da chaga de Atena é a chaga em seu âmago, e é justamente sobre o coração, sobre o peitoral, que muitas imagens gregas colocam a cabeça da medusa. Em linguagem psicológica, a camada mais grossa da estrutura defensiva será aquela mais próxima do cerne do complexo. Pois, como um animal machucado, a mulher-Atena profundamente ferida irá afugentar com selvageria todos aqueles que mais poderiam ajudá-la, pois não tem como desramar suas defesas, tirar sua armadura e expor a essência nua e infinitamente sensível de sua feminilidade.
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