quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

A Deusa Grega na Mulher Humana: O Arquétipo da Mulher-Perséfone

Perséfone: médium, mística e soberana dos mortos

O mito do sequestro
A versão mais completa da história de como a donzela Perséfone foi raptada e levada para o mundo avernal está nos Hinos Homéricos, uma das mais antigas fontes de mitos gregos de que dispomos. (Hades, “o filho de Cronos de muitos nomes”, é aqui também chamado de Aidoeus):
Hades rapta PerséfoneComeço minha canção da santa deusa, Deméter dos cabelos louros, e de sua filha de tornozelos finos, a quem Aiodeus arrebatou e levou embora; e Zeus, de estrondosa como trovão, permitiu que assim fosse. Brincava com as filhas seiudas de Oceano, longe de Deméter da arma dourada e fruto glorioso, colhendo flores pela vicejante campina – rosa, açafrões, violetas, íris, jacintos e um narciso, armadilha plantada para a florescente donzela pela Terra (Gaia) conforme os planos de Zeus e um favor para Hades, de muitos o anfitrião. Jacinto, radiante e magnífico, inspirava maravilha em quem o contemplasse, fosse deus imortal ou homem mortal; uma centena de talos crescia de sua raiz; e todo o céu acima, e toda a terra, e as ondas de sal no mar, sorriam e regozijaram-se com a sua fragrância. A menina deixou-se encantar, e esticou ambas as mãos para colher aquele deleitoso brinquedo, quando subitamente a terra se abriu ao longo da planície. E de lá o amo e Senhor de muitos, o filho de Cronos de muitos nomes, arremessou-se das profundezas para longe em sua carruagem dourada. A menina ergueu a voz num clamor, chamando o bondoso e todo-poderoso pai Zeus. Mas ninguém, nem deus nem mortal, ouviu sua voz, nem mesmo as oliveiras e seus frutos esplêndidos, senão a pequenina filha de Perses, Hécate, a do véu reluzente, que – de sua caverna – ouviu, e também Helios, senhor, glorioso filho de Hipérion, enquanto a donzela clamava por seu pai Zeus, que estava sentado, longe dos outros deuses, em seu muito solicitado templo, recebendo finos sacrifícios dos mortais.
Contra a vontade da menina mas com a aprovação de Zeus, ele a levou para longe em seus cavalos imortais, o filho de Cronos de muitos nomes, irmão de seu pai, designador de muitos, de muitos anfitrião. Enquanto a deusa ainda enxergava a terra e o céu estrelado, as correntes do mar cheio de peixes e os raios do sol, manteve a esperança de ser vista por usa bendita mãe e pela raça dos deuses imortais, e grande era a esperança em seu coração apesar da angústia e agonia.

Quem é Perséfone?
uma deusa evanescente

É possível que a mulher-Perséfone não nos impressione particularmente no primeiro encontro. Não que ela seja tímida ou lhe falte presença, e sim mais pela sua modéstia e discrição. Porém, aqui um rosto e uma maneira de ser atraentes, que pareçam nos sorrir e que, via de regra, têm algo de juvenil; uma pessoa simpática e aparentemente ansiosa por agradar, tendo em si um encanto distintivo, ainda que não seja o fascínio reluzente de uma mulher-Afrodite nem o calor natural de uma Deméter.
De algum modo, a mulher-Perséfone não parece interessada em se afirmar muito intensamente. Ela não possui a solidez de propósito de uma Ártemis, aquela velada disponibilidade de partir para alguma outra parte. E nem conta com o terreno firme da imperiosidade de Hera ou a genuinidade intelectual de Atena.
Há uma peculiar insubstancialidade na mulher-Perséfone, uma qualidade que nada tem que ver com seu corpo. Uma parte dela, podemos até pressentir, está em outro lugar. Todavia, ao mesmo tempo, ela é tão intuitivamente “ligada” que aprece estar presente até mesmo em nossos pensamentos.
Algumas mulheres-Perséfone exibem uma qualidade quase transparente, uma espécie de vulnerabilidade espiritual. No entanto, apesar disso tudo, não há um tipo físico que caracterize uma mulher-Perséfone. Uma poderá ser magra, franzina mesmo, enquanto outra pode igualmente ser gorda e não dar importância ao corpo. Não podemos deixar de suspeitar que ela se sente pouco à vontade com seu corpo e, possivelmente, com sua sexualidade. E, contudo, ela não optou pelo caminho intelectual independente de Atena nem pelo caminho da ação de Ártemis para compensar. Em sua fragilidade, nós pressentimos um anseio por afeição e intimidade profunda, embora seja difícil dizer se é a intimidade do espírito ou do corpo que ela realmente deseja.
Já começamos a pressentir a aura de mistério que envolve a mulher-Perséfone, o seu elo oculto com o espírito e sua profunda ambivalência em relação a um mundo que poderá deliberadamente interpretá-la mal. Talvez, se observarmos mais de perto, o seu exterior encantador não é mais que isso, uma exterioridade sutilmente concebida para proteger e ocultar uma intensa interioridade.
O poeta E. E. Cummings escreveu um lindo poema que evoca o mistério esquivo por debaixo da máscara da mulher-Perséfone:
em algum lugar onde nunca estive, de bom grado além
de toda experiência, seus olhos têm o seu próprio silêncio;
em seu mais frágil gesto há coisas que me envolvem,
ou que não posso tocar por estarem próximas demais
seu mais singelo olhar facilmente me desvela
embora eu tenha me fechado como dedos,
você abre pétala por pétala a mim como abre a primavera
(tocando habilmente, misteriosamente) a sua primeira roa…
nada o que haveremos de perceber neste mundo iguala
o poder da sua intensa fragilidade…
Se Cummings estava descrevendo uma mulher-Perséfone real ou contemplando a sua própria Perséfone interior no rosto de alguma mulher, não é importante (ambas podem coincidir nesse momento). O que o seu poema maravilhosamente graciosos põe em relvo é a sutil dissolução do “eu” e do “outro” num estado quase místico de fusão. E precisamente esta perda do eu, que se assemelha a um transe, que é tão sugestiva do segredo de Perséfone, da sua incomum capacidade de permanecer no limiar ou de adentrar domínios da consciência psíquica.
A mulher-Perséfone, portanto, contata que precisa verdadeiramente viver nos limites do conhecido, próximo daquelas regiões que nós descrevemos com prefixos e latinos como para-, meta- super- ou sobre-, todos eles significando “além de” ou “transcendendo a”. O seu mundo é paranormal e a estrutura de sua consciência é objeto de parapsicologia, uma ciência que estuda as regiões-limite “além” da psicologia normal ou convencional. Da mesna forma, será atraída pelos ensinamentos da metafísica mais do que pelos das ciências naturais convencionais.
É precisamente porque Perséfone habita as fronteiras do cientificamente conhecido que ela se sente alienada e insegura de si mesma. (…)

Perséfone, a mulher medial

PersefonePara os gregos, Perséfone era a Rainha distante do Mundo Avernal, que vigiava as almas dos falecidos, as sombras. Mas ela era conhecida também como a virgem, a donzela – Coré – que foi sequestrada de sua mãe Deméter. Sua descida ao mundo avernal ao ser raptada por Hades é uma das histórias mais conhecidas de toda a mitologia grega.
(…) Como já vimos, o caráter da mulher-Perséfone não é nada fácil de entender. Muitas mulheres-Perséfone são altamente reservadas e, muitas vezes, reclusas. O desgaste psíquico de permanecer em meio às pessoas e à agitação dos mercados frequentemente faz com que elas se retirem do cenário social e tentem se manter, apesar das dificuldades, à margem da sociedade. Essas mulheres precisam de muito tempo sozinhas, levando a cabo seus projetos secretos, suas reflexões, sua comunhão com o mundo invisível. Isso é o que significa viver a maior parte de sua vida no mundo avernal, entre os espíritos.
Hoje em dia, cada vez mais Peréfones latentes têm buscado a literatura esotérica, as formas alternativas de cura e o que se chama vagamente de ensinamentos da Nova Era. De modo que, mais do que nunca, é oportuno penetrar mais na história velada de Perséfone, rainha e co-regente do mundo do além-túmulo. Acreditamos que o seu mito tem muito a dizer às mulheres modernas que se esforçam para compreender toda especie de intrigantes experiências “psíquicas” na natureza ou que, de uma forma ou de outra, são atraídas a trabalhar com a morte ou sofreram grandes tragédias pessoais em suas vidas.
Muitas coisas apontam para o fato de a mulher-Perséfone ser dotada daquilo que Toni Wolff, a colaboradora mais próxima de Jung, sagazmente identificou em 1951 como “personalidade mediúnica ou medial”. Eis como Wolff a descreve:
A mulher medial está imersa na atmosfera psíquica do ambiente em que vive e no espírito da sua época, mas sobretudo no inconsciente coletivo (impessoal). O inconsciente, ao ser constelado [isto é, quando suas formas começam a se delinear] e puder se tornar consciente, exerce um efeito. Esse efeito prevalece sobre a mulher medial, que é absorvida e moldada por ela (e chega às vezes a representá-lo). Ela precisa, por exemplo, exprimir ou representar aquilo que “está no ar”, aquilo que o seu ambiente não pode ou não quer admitir mas que, não obstante, é parte dele. Trata-se sobretudo do aspecto sombrio de uma situação ou ideia predominante – e desse modo ela ativa o que é negativo e perigoso, tornando-se assim a portadora do mal, ainda que o que faça seja exclusivamente um problema pessoal seu.
“Structural Fomrs of the Feminine Psyche”, p.9
Como mulher medial, a maior dificuldade de Perséfone é que, via de regra, ela tem uma estrutura frágil de ego – ao contrário de Atena, Ártemis e Hera, a quem Wolff chama conjuntamente de tipo “Amazona”. A mulher-Perséfone é, portanto, facilmente suscetível a ser sobrepujada quando conteúdos vindos “do lado de lá”, isto é, da sua mente inconsciente (e que seriam tradicionalmente denominados “espíritos”), a avassalam:
Como os conteúdos em questão são inconscientes, ela carece da faculdade necessária da discriminação para poder percebê-los, e da linguagem para poder expressá-los adequadamente. A força avassaladora do inconsciente coletivo perpassa pelo ego da mulher medial, e o enfraquece. (Ibid.)
Quando tem um pouco de força do ego e da capacidade de discriminar de Atena ou Hera, ela consegue formular ou transmitir adequadamente esses conteúdos. E então, como observa Wolff, tem um papel importante e criativo a desempenhar na sociedade:
Nesse caso, ela se consagra ao serviço de um novo, e talvez ainda oculto espírito da sua época – como os primeiros mártires cristãos [ou] as místicas da Idade Média. [...] Em vez de se identificar com os conteúdos do inconsciente coletivo – bastante desvinculados da realidade – ela deveria considerar a sua faculdade medial como um instrumento e receptáculo desses conteúdos. As mulheres mediais tinham em culturas anteriores uma função social como videntes, ialorixás ou xamãs – e ainda a têm entre os povos primitivos (pp. 9-10)
Pouco foi acrescentado à literatura da psicologia de Perséfone desde o que Toni Wolff escreveu em 1951. Contudo, como aumentou a nossa compreensão da consciência das deusas, certamente é chegada a hora de examinarmos mais a fundo a sua visão singular das coisas.

Outros aspectos

    persefone4
  • O mito descreve vividamente como a inocente donzela Perséfone estava brincando certo dia com todas as filhas de oceano, incluindo Atena e Ártemis, quando de repente a terra se abriu e o grande Senhor da Morte, Hades, surgiu em sua carruagem e arrastou-a, aos berros, para o mundo avernal a fim de casar-se com ela.
  • O que é o mundo avernal? Na linguagem da psicologia moderna, seria chamado de inconsciente. De modo que Perséfone á aquela que foi sorvida não apenas pelo inconsciente, pelo desconhecido, por tudo o que é reprimido e sombrio (Freud), mas ainda mais profundamente pelo inconsciente coletivo, o mundo das potestades e poderes arquetípicos (Jung).
  • Uma jovem mulher pode vivenciar isso de diversas maneiras. alguma tragédia de infância poderá fazê-la mergulhar num estado de depressão, de retraimento meditativo, atendo-se interiormente a pensamentos do ente querido que morreu. Em segredo, ela poderá fantasiar que se encontra com a pessoa falecida ao visitar um cemitério, quando então é levada para algum mundo espiritual subterrâneo.
  • Na realidade, depressão e retraimento, acompanhados ou não de fantasias suicidas, podem seguir-se a uma grande perda, separação ou trauma violento em qualquer idade. De modo que a descida ao mundo avernal não é restrita à infância. Podemos ser atraídos ao domínio tenebroso de Perséfone após um divórcio, uma mudança não desejada para algum lugar distante, um aborto, a perda de um emprego, algum trauma severo ou quando somos a única pessoa a sobreviver a um acidente de automóvel. A perda é, afinal, exatamente isso: o sentir arrancada de si a energia da imagem de alguma pessoa, lugar ou modo de vida amado, que é substituída por um enorme, ermo, vazio emocional. Freud caracterizou toda depressão como um tipo de luto pela perda de algum objeto amado.
  • O desaparecimento de um objeto amado num grande, ermo e oco vazio é descrito em uma linguagem simbólica expressiva como a descida ao mundo avernal. O que é reconfortante sobre o mito de Perséfone é haver uma figura guardiã que rege estes períodos terríveis de perda de energia e que nos protege, por assim dizer, até estarmos prontos para voltar à vida normal cotidiana. Metaforicamente falando, toda a energia vital que perdemos durante a depressão, a dor ou o desgosto de qualquer espécie, “foi para o mundo avernal”. É como nós às vezes dizemos a alguma cliente desgostosa, uma parte de nós sempre acompanha a pessoa ou coisa que amávamos ao mundo avernal, que deixa de estar plenamente disponível para a vida normal. temos de respeitar esse processo em vez de tentar nos alegrar artificialmente.
  • A mulher cuja vida inteira se torna completamente identificada com Perséfone em geral sofreu algum trauma particularmente severo, muitas vezes na primeira infância, que tinge de maneira indelével sua postura psíquica perante a vida. Tragédia desmesurada, associada a uma excessiva sensibilidade e a um ego frágil, pode propiciar o modelo em que a jovem é arrastada com tal impetuosidade para o mundo avernal que ela se sente forçada, ou assim parece, a permanecer a maior parte da vida lá. A estrutura mítica refere-se aqui não mais a uma depressão temporária, mas a uma constituição crônica de consciência dupla ou dividida.
  • Esta jovem ou mulher será claramente uma iniciada muito relutante nos domínios sombrios da psique. Tudo acontece depressa demais, espontaneamente demais, como que indo do nada. Sentindo-se totalmente impotente, ela descobre que precisa aprender a viver em dois mundos radicalmente diferentes: o mundo da vida e da luz representado pela mãe, Deméter; e o mundo das sombras e da morte, representado por Hades. E assim ela se vê dividida em suas lealdades, em sua autoridade sobre si mesma e em sua visão das coisas. Ela é capaz de enxergar os dois mundos: aquilo que pode ser revelado e aquilo que deve permanecer secreto. Ela tem de ser leal para com os vivos e os mortos. É um fardo tremendo, uma responsabilidade momentosa que é sua e somente sua.
  • Para a mulher-Perséfone, sempre há algum elemento de tragédia logo cedo na vida que a afasta à força do mundo inocente dos folguedos com suas irmãs Atena e Ártemis. Pode ser a perda precoce do pai ou da mãe, abuso sexual quando criança, alguma doença grave, pai ou mãe alcoólatra ou esquizofrênico, ou mesmo ter nascido de um parto excepcionalmente difícil. Nunca há simplesmente causas, e sim eventos que antecipam a descida ao mundo dos mortos que a jovem Perséfone parece fadada a empreender mais cedo ou mais tarde.
  • Quando uma mulher se identifica demais com Perséfone à exclusão de todas as outras deusas, será invariavelmente atraída a situações em que ela ou alguém acaba saindo machucado. Poderá vir a sofrer acidentes ou misteriosas enfermidades que a tornam dependente da assistência governamental. Poderá acabar inevitavelmente cuidando de sus pais enfermos ou moribundos. Poderá atrair para si homens encantadores, mas brutais e intimidadores, dos quais não conseguirá escapar. nada disso é obra sua. Parece surgir do nada, de maneira implacável, esmagadora, inexplicável.
  • A noite escura da alma: o que Perséfone não logrou compreender é que a vítima dentro dela realmente precisa ser sacrificada e contrair núpcias com os poderes escuros. A palavra sacrifício não significa apenas renunciar ou abandonar, no sentido de perder algo, mas literalmente “tornar sacro” [sacrum facere]. Toda dor, raiva e mágoa precisam ser oferecidas para forças que estão além de si. O chamado de Perséfone é um chamamento sagrado, uma vida que pertence, não a ela, mas à deusa e ao seu consorte no mundo avernal.
  • Quer queira, quer não, a mulher-Perséfone foi chamada a renunciar à sua inocência de donzela e a dedicar uma grande parcela de sua vida entrando e saindo do mundo avernal. Via de regra, ela fará isso como auxiliar ou guia de outros. Por ter estado lá, por ter visto os lados mais tenebrosos do sofrimento humano, e ter sobrevivido, ela se torna um facho de luz.
  • A Perséfone madura que retornou de sua jornada vive de algum modo além do mundo comum, ainda que permaneça em íntimo contato com ele. Ela tornou-se uma feiticeira, isto é, uma mulher sábia que “já viu tudo” e que, portanto, pode mostrar-se sempre alegre e bem-humorada, achando sardonicamente divertida a loucura humana. Em sua forma completa, ela reúne em si o início e o fim do ciclo da vida, o nascimento e a morte. De maneira que, mesmo quando anciã, ainda preserva a própria juventude; e, como uma jovem iniciada, traz consigo a jubilosa sabedoria dos anos.
 
 
Por Simone Luciaurea.
 

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