quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

A Deusa Grega na Mulher Humana: O Arquétipo da Mulher-Hera

 

Um excerto do livro “A Deusa Interior“, de Jennifer Barker Woolger e Roger J. Woolger

Hera: rainha e companheira no poder

Hera: Uma deusa conquistada e coagida
Poucos autores que tratam da religião e cultura gregas são tão respeitados quanto Jane Ellen Harrison (1850-1928), a estudiosa classicista de Cambridge. Harrison empregou as descobertas etnográficas de The Golden Bough [O ramo de ouro], de sir James Fraser, e também os estudos antropológicos pioneiros do matriarcado e do patriarcado para compor um quadro bastante convincente da evolução e do contexto social da antiga religião grega. Suas conclusões, nada populares entre os patriarcas acadêmicos do seu tempo, são hoje plenamente aceitas, emboras representem revisões da história grega. Eis como ela viu Hera e Zeus.
HeraEntão, para compreender a religião, devemos ir além da teologia, além, no caso dos gregos, das figuras do Olimpo, além mesmo das formas sombrias dos daimones, e penetrar até a consciência social, antes e acima de tudo naquela que é a sua primeira e talvez mais permanente expressão, a estrutura social – o sistema organizado de relacionamentos humanos.
Isso nos traz de volta aos habitantes do Olimpo. De qual estrutura social eram eles a projeção?
Indubitavelmente, eles representavam a forma de sociedade que também é a nossa, a família patriarcal. Zeus é o pai e o chefe; apesar de Hera e ele viverem em constante e indecoroso conflito, não resta dúvida quanto à sua derradeira supremacia. Hera sentia ciúme, Zeus vivia exasperado, mas nem por isso era menos dominante no final. É um quadro interessante moderno, até mesmo no que tange ao bando heterogêneo de filhos e filhas já crescidos vivendo ociosamente em casa e brigando sem parar. A família vem até nós como a última e vã esperança de coletivismo. [...]
O Olimpo fica no norte da Tessália. Estamos hoje tão obcecados com o Olimpo literário de Homero que tendemos a esquecer que o Olimpo era, para começar, uma montanha de verdade. Zeus, pais de deuses e homens, Zeus o deus do céu, com toda a prenhe paternidade de Wotan (Odin), é um nórdico – ou pelo menos foi fortemente modificado pela influência racial nórdica. Como Pai, embora talvez não inteiramente como Deus Celeste, ele é a projeção da paternidade dos nórdicos. Ele, ou melhor, sua paternidade, veio do norte junto com uma ou mais tribos, cujo sistema social era patrilinear. Hera, representando um sistema matrilinear, era nativa; ela reinava só em Argos, em Samos, e seu templo no Olimpo era distinto do de Zeus e anterior a este. Os nórdicos conquistadores passam de Dodona para a Tessália. Zeus abandona a sua verdadeira esposa-sombra, Dione [uma titanesa], em Dodona, ao passar da Tessália para Olímpia; e em Olímpia, à maneira de um chefe conquistador, casa-se com hera, uma filha do lugar. No Olimpo, Hera parecer apenas uma esposa ciumenta e briguenta. Na realidade, porém, ela reflete a turbulenta princesa nativa, coagida mas nunca realmente subjugada, por um conquistador estrangeiro.
Themis: A Study of the Social origins of Greek Religion, pp. 490-91

Para conhecer Hera

Hera sempre se destacará numa multidão. Ela exala confiança em si mesma, tem perfeito domínio de si própria e, quase sempre, dos demais. A consciência de Hera é mais bem percebida em mulheres mais velhas, nas quais o pleno impacto de sua autoridade e dignidade naturais pode ser sentido. Ela é aquela que parece nascida para mandar, não importando qual seja a sua classe social. É na segunda metade da vida que a sua afinidade natural com o poder irá despontar, manifestando-se às vezes como elitismo, às vezes como esnobismo e, ocasionalmente, como pura realpolitik, quando ela então se torna a impiedosa dirigente de alguma organização ou, talvez, até mesmo de uma nação. Regiamente, com certa arrogância e uma frequente inclemência, Hera em seu pleno viço emana autoconfiança e uma inabalável retidão. Nas palavras de Rider Haggard, ela é “aquela que tem de ser obedecida”.
Hera floresce no companheirismo do matrimônio. Uma mulher-Hera sozinha ou solteira – excetuando-se aqui divórcio e viuvez – é uma realidade. Como esposa de Zeus, a antiga deusa grega era co-governante no Olimpo, onde oficialmente partilhava o poder com o chefe dos deuses. Era também a deusa do casamento – embora, como veremos, o seu próprio estivesse longe de ser feliz.
HeraHoje, quando encontramos Hera, ela na superfície parece ter um bom casamento, filhos crescidos dos quais se orgulha e, muitas vezes, todo o peso de uma tradição familiar por trás. Ela se mostrará bem vestida, ainda que de maneira conservadora, e terá uma presença “maciça” – que não se reflete necessariamente no seu tamanho físico. Poderemos encontrá-la em comitês de planejamento, em recepções ou em clubes de campo. Ela é claramente uma pessoa de status e de estatura, alguém que imediatamente granjeia o nosso respeito.
No mundo moderno, ela costuma personificar mais proeminentemente a esposa do “grande homem” – sendo casada, por exemplo, com algum bem-sucedido homem de negócios, presidente do conselho de alguma empresa ou, possivelmente, reitor de uma universidade. Na mais cobiçada função de hera nos Estados Unidos, ela, como primeira-dama, seria esposa do presidente.
Desnecessário é dizer que, quando detém o poder, Hera é uma oponente formidável em qualquer debate ou choque de vontades, seja na família ou na esfera política. Energia para fazer as coisas, uma vontade de ferro e idéias resolutamente fixas caracterizam a Hera madura. Por seu autoritarismo, ela é fácil de caricaturar; e, por suas máximas imperiosas e arrogantes, fácil de ser lembrada (é o caso do apócrifo “Não estamos achando isso nada divertido” da rainha Vitória, ou do “Cortem-lhe a cabeça!” da Rainha de Copas em Alice no País das Maravilhas.
Quando está no topo da hierarquia de alguma organização ou instituição, Hera pode ser tão implacável quanto qualquer cacique ou mandachuva. (…) Com ou sem parceiro poderosos, a hera moderna é invariavelmente a matriarca, a abelha-rainha em seu círculo imediato, seja este grande ou pequeno. Se não a encontrarmos no cenário político, ela certamente se destaca no ambiente familiar. Muitas vezes será a figura dominante de uma família, na qual – respeitada ou odiada, temida ou despercebida – é uma força a ser considerada. (…)

A postura social de Hera

Mais do qualquer outra deusa, a mulher-Hera é extremamente consciente da sua posição na sociedade. Ela não só defende todos os valores mais conservadores da sua casta social, como também tenderá a assumir o papel de juíza dos novos gostos e costumes. Na realidade, para aqueles com as quais se defronta, ela parecerá tremendamente arbitrária e dogmática. Ela adora dar sugestões e pregar sermões quando rodeada por correligionários leais, mesmo que seja apenas no nível da futricagem, na qual é perita.
Devido às suas aspirações sociais evidentes, Hera sente-se mais à vontade naqueles círculos ou instituições que celebram e reforçam a sua posição e dignidade. Ela adora todos os encontros familiares, onde pode se ver rodeada e adorada por filhos e netos. O amor deles geralmente é secundário; muito mais importante é que eles a respeitem e reverenciem como o centro das questões familiares e do decoro social.
(…) Todas as reuniões familiares e ocasiões sociais, não apenas casamentos, trarão à tona o melhor da mulher-Hera. Ela adora sentir ao seu redor o palpitar de uma comunidade congregada pelos mesmos valores e tradições. Numa escala maior, a mulher-Hera poderá ser encontrada dirigindo organizações de caridade, banquetes, recepções e campanhas de angariação de fundos. Não resta dúvida de que ela aprecia o trabalho que a organização desse tipo de evento envolve, fazendo ela própria todos os telefonemas e contatos, e verificando pessoalmente os nomes, credenciais, origens e linhagens de todos os envolvidos.
Por causa de seus padrões elevadíssimos, ela parecerá aos demais como exageradamente crítica, dogmática e até ditatorial. Embora possa pertencer a diversos comitês, ela na realidade tem pouca paciência para esse tipo de instrumento democrático de tomar decisões, pois em geral sabe de antemão exatamente o que deseja, e não hesita em manobrar tudo e todos – com a maior cortesia possível, é claro – para chegar aonde quer.
Independente de suas origens sociais, Hera quase sempre aspirará à proeminência em qualquer grupo a que pertencer. Numa família operária, fará sentir sua presença como a autoridade máxima do que a “nossa família” aprova ou desaprova. Ela não consegue deixar de ser um pouco esnobe, pois sempre se sentirá forçada a defender sua concepção de “respeitabilidade” social e familiar – uma de suas expressões preferidas. Sempre considerando o seu parceiro, a sua família e os seus filhos como melhores que os demais, ela tende a acalentar toda espécie de aspirações expressas ou fantasiosas para eles.

Hera e Zeus: um tempestuoso casamento no Olimpo

Zeus_e_HeraHera, que os gregos antigos tinham como a rainha dos deuses, governava o Monte Olimpo junto com o marido. Ainda hoje, em lugares como Argos, Samos e a pré-clássica Nicena, restam templos do seu antigo culto, no qual era adorada, com um consorte secundário, como a Grande Deusa-Mãe – e, especificamente, como a deusa do matrimônio. Todavia, o pouco que sabemos dela chegou-nos principalmente através da Ilíada de Homero, na qual é retratada como uma esposa ciumenta e metediça. O estudioso Walter Burket escreveu que “em comparação com a alta estima em que era tido o seu culto, Hera parece sofrer uma perda de status em Homero, tornando-se uma figura quase cômica. Como esposa legítima de Zeus, ela é mais um modelo de ciúmes e contendas conjugais do que de afeição conubial”.
O que Burket descortina é sem dúvida a necessidade que as culturas dominadas pelos homens têm de satirizar mulheres poderosas, uma necessidade sentida ainda hoje. (…) É uma maneira de aliviar não só o medo mas também, em grande parte, a culpa que os homens sentem por negarem poder à mulher. Quando os gregos preferiram adotar as caricaturas homéricas da esposa ciumenta e do marido libertino, eles provavelmente o fizeram em detrimento do respeito mais solene devido a hera como deusa do matrimônio.
Pelo que o mito nos diz, Hera tinha bons motivos para ficar com raiva e com ciúmes de seu marido, Zeus. Como “pai de deuses e homens”, ele parece ter exercido sua função literalmente, ocupando-se em gerar tanto um quanto outros. E, todavia, praticamente, nenhum de seus filhos foi concebido dentro dos limites de seu casamento oficial. Dos deuses, ele teria gerado Ártemis e Apolo com a deusa Leto, Hermes com a deusa Maia, Perséfone com a deusa Deméter, Dionísio com a deusa Sêmele, e Atena (de maneira pouco ortodoxa) com a deusa Métis. O único deus que nasceu efetivamente do concurso entre Zeus e Hera foi Ares, deus da guerra e o menos popular de todos os deuses gregos.
Além do seu congresso amoroso com as diversas deusas, Zeus teve diversas aventuras com mortais, muitas vezes sob a forma animal. Disfarçado de cisne, dize-se que ele seduziu Leda, gerando Helena de Tróia e os gêmeos Dioscuros; disfarçado de touro, seduziu Europa, gerando Minos e Radamantis; e gerou Herácles depois de seduzir Alcmea. Talvez também devamos mencionar o seu famoso amor homossexual pelo lindo jovem Ganimedes, a quem seduziu sob a forma de uma águia.
Sob muitos aspectos, Zeus e sua incontida promiscuidade foram para os gregos uma afirmação do poder máximo do mundo paternal e, consequentemente, do patriarcado. Macho fálico supremo, sua virilidade é retratada como inesgotável. Entretanto, talvez tenha havido motivos políticos por trás dessas histórias, como afirmaram há muito os estudiosos clássicos jane E. Harrison e Robert Graves. De acordo com a leitura desses autores, os evolvimentos promíscuos de Zeus com outras deusas certamente refletem o período da história grega em que tribos guerreiras do norte invadiram e cooptaram os antigos cultos da Grande Mãe. Durante várias gerações, a Grécia primitiva foi palco de uma tremenda mistura cultural dos primeiros israelitas, cujo deus supremo Yahweh proibiu todos os outros deuses (e especialmente deusas) diante de si, Zeus uniu-se a muitos deles – e, ao fazê-lo, produziu novas formas e cultos religiosos.
De modo que, quando analisamos o casamento desgraçado de Hera com Zeus, podemos interpretá-lo em dois planos: primeiro, como o retrato da instável fusão entre os cultos matriarcais da Deusa-Mãe já existente na Grécia e a religião das tribos guerreiras patriarcais que invadiram a Grécia vindas do norte; e, segundo, como um verdadeiro espelho das enormes tensões presentes nos relacionamentos matrimoniais dos primeiros gregos.
Robert Graves, em The Greek Myths, acredita que o mito do casamento de Zeus e Hera remonta à época da invasão dórica. Os bárbaros dóricos, uma tribo nórdica de caçadores, invadiram a Grécia no final do segundo milênio a.C. trazendo consigo seus deuses da caça e do céu, Zeus e Apolo. Os povos nativos da Grécia primitiva, particularmente aqueles dos arredores de Nicena, teriam cultuado a Grande Mãe de maneira semelhante aos cretenses e celtas. Esses povos ainda reverenciavam a Deusa-Mãe e, assim, concediam às mulheres uma posição de enorme respeito e as consideravam portadoras de um poder mágico.
Graves acredita que durante um certo período da instável ocupação da Grécia matriarcal pelos reis guerreiros, as antigas sacerdotisas de Hera ensaiaram uma revolta, mas foram esmagadas e humilhadas. O matrimônio sagrado de Zeus e Hera vincula-se, portanto, ao amálgama forçado dos antigos cultos Mãe com a religião olimpiana ou celeste, regida pelo Senhor dos Raios, o Todo-Poderoso. Nós concordamos com Graves em achar bastante provável que os conquistadores massacraram a maioria dos homens e concederam às mulheres, incluindo as sacerdotisas, a lúgubre escolha entre a morte ou a submissão à nova ordem.
Na época da Ilíada de Homero, o triste estado do casamento grego já era uma solução de compromisso bastante antiga. As religiões maternais já haviam se fragmentado e dividido, como vimos que aconteceu com todas as outras deusas; e embora o casamento houvesse permanecido como uma parte crucial do sistema social, como em todas as sociedades humanas, passara a refletir a estrutura de poder de um patriarcado para o qual a descendência pelos filhos homens era primordial. É triste dizer, mas o casamento enquanto instituição tinha pouco que ver com amor ou paixão – coisas que estavam relacionadas, ainda que marginalmente, com Afrodite, a padroeira das heteras, das prostitutas e de todos os tipos de ligações eróticas. Robert Briffalut resume a situação na antiga Atenas em sua obra clássica The Mothers: “Não temos um único instante em que um homem ama uma mulher livre e casa-se com ela por amor”. (p. 112)
Assim, talvez não seja por acidente que, simbolicamente, o único filho nascido de Zeus e Hera tenha sido Ares, o deus da guerra. Zeus e Hera estão em constante guerra no Olimpo, disso não resta dúvida. Além do mais, uma das causas de tensão na família ateniense e espartana era que o homem deveria viver permanentemente em estado de prontidão para o serviço militar.

Outros aspectos

    Hera
  • A despeito de todas as limitações, humilhações e deficiências do casamento, a mulher-Hera ainda se sente profundamente atraída por ele: ela não quer viver e trabalhar sozinha. O preço da liberdade é alto demais. Fundamentalmente, Hera personifica o instinto de unir-se a um homem, de “aparceirar-se” a ele. Neste e em muitos outros aspectos do papel de esposa tem um significado profundo para ela. Romanticamente, a mulher-Hera anseia por dividir a tarefa de criar filhos, estabelecendo uma unidade singular chamada família e assegurando que o seu marido conquistará uma posição sólida e respeitada para todos aos olhos do mundo. Ela acredita, em suma, no valor fundamental e na necessidade da família tradicional, e está corajosamente preparada para sacrificar muitas coisas a fim de assegurar a sua perpetuação.
  • Para Atena e Ártemis, a esposa Hera pode parecer estar entregando todo seu poder ao parceiro. Mas, para Hera, isso é vivenciado como conquista de poder. Ao ingressar na união conjugal, ela se torna mais do que costumava ser quando solteira. Na sua nova identidade de esposa e parceira, de ajudante, ela se torna a personificação de tudo o que contribuirá para tornar o marido completo e, por sua vez, ela própria se torna a personificação da plena inteireza dele. Sob muitos aspectos, é isso que o casamento deveria ser: um completar-se através do outro – embora o modo como isso ocorre seja essencialmente um mistério no sentido mais profundo da palavra.
  • As ambições de Hera: Há perigos consideráveis quando Hera busca completar-se através de seu companheiro, especialmente na juventude. Como o arquétipo de Hera só se manifesta plenamente numa mulher na segunda metade da vida, todo o poder que caberá mais tarde a ela permanece dormente durante todos os anos em que ainda é jovem. Dada a sua profunda admiração por homens fortes e ambiciosos, e considerando-se o seu natural anseio por companheirismo, ela poderá com demasiada facilidade deixar suas próprias ambições para trás, empatando suas energia consideráveis no incipiente casamento e, não muito depois, na família que vai se formando. Nesse sentido, suas céticas irmãs-Atena estão certas: ela de fato está entregando o seu poder – mas aos olhos da jovem Hera trata-se mais de um investimento a longo prazo que ela espera intuitivamente receber mais tarde com juros.
  • Na superfície, a jovem Hera será muito parecida com a jovem Atena. Ambas são brilhantes e cheias de energia, e ambas exalam autoconfiança. Uma e outra valorizam a educação, e se mostram ansiosas por compreender e ter êxito na sociedade dominada pelos homens que elas vêem ao seu redor. Mas as ambições de uma e de outra são muito diferentes. Podemos constatar isso quando se formam na faculdade, por exemplo. A jovem Atena estará ocupada examinando todas as opções de pós-graduação a seu dispor, e o treinamento acadêmico ou profissional será a sua prioridade. A jovem Hera, por outro lado, estará muito menos interessada em prosseguir seus estudos do que em manter os olhos cuidadosamente abertos para aqueles homens que, a seu ver, têm maior probabilidade de sucesso e se esforçará para conseguir algum meio de sair com eles. Em resumo, a jovem Hera busca um marido e a jovem Atena busca uma carreira.
  • zeus_and_hera
    Basicamente, a mulher-Hera quer duas coisas do marido: parceria e igualdade. em última análise, isso significa que quer ter exatamente tanto poder quanto ele. Mas, a menos que por algum motivo não possa ter filhos, raramente é possível que aos vinte ou trinta anos ela possa dividir plenamente o negócio ou a carreira com o marido. Ela terá que sacrificar a sua ânsia de governar o mundo exterior em troca da direção do lar e do cuidado dos filhos, tarefas que empreenderá com a máxima seriedade.
  • Intrigas e futricos deixam-na fascinada, embora via de regra se possa confiar na sua discrição; na realidade, ela é uma excelente diplomata. Por ter se tornado a principal confidente e conselheira do marido, frequentemente exercerá uma considerável influência sobre ele. Quando isso acontece – como com Nancy e Ronald Reagan – ela pode tornar-se muito possessiva e ferozmente protetora do grande homem que ajudou a criar.
  • Durante toda a sua vida, hera gravitará instintivamente em direção ao poder e aos homens poderosos, especialmente aqueles envolvidos na política, nos negócios e nos níveis patrícios da sociedade. Ela fica verdadeiramente fascinada e impressionada com as figuras públicas e com a maneira de atuarem. Nada a faz sentir-se mais importante do que oferecer ao seu parceiro opiniões sobre os encontros, negócios ou crises em que ele no momento está envolvido.
  • Enquanto o marido não consumar plenamente os desejos e fantasias que essa mulher-Hera tem acerca do seu potencial, ela poderá apoquentar, intimidar e até mesmo tiranizar tanto ele quanto seus colegas. E se finalmente consegue o que quer, quase sempre continuará sedenta de obter ainda mais poder através dele.
  • Uma reação mais extrema ocorre se o parceiro escolhido por uma mulher-Hera ambiciosa revelar-se totalmente vão e ineficaz, e ainda por cima resistir às suas tentativas de manipulá-lo. Quando o marido priva assim a sua ânsia de poder de um cenário mais amplo, o apetite de Hera pelo poder e pelas intrigas tenderá a ser canalizado para os membros e gerações de sua própria família. O marido será acossado, os filhos oprimidos e as amigas regaladas com um desfilar ininterrupto de queixas e reclamações. em sua tentativa de tornar-se a matriarca da família, ela caba sendo ridicularizada pelas costas como “a mulher que cata de galo”, a ranheta, a rabugenta, o objetivo de todas as velhas piadas de sogra. Não mais uma lady Macbeth que conquista o mundo inteiro ao preço da sua alma e da do marido, ela se torna aqui uma megera indomada.
  • O protesto fálico de Hera: por debaixo de todas essas tensões extremas, não é difícil ver atuando a mesma dinâmica marital de Hera e Zeus. É um exemplo do que o psicanalista Alfred Adler concebe como “protesto masculino” das mulheres, um protesto sobretudo contra o fato de o marido mais uma vez negar à esposa qualquer poder efetivo, exceto no lar.
  • Mulheres carregando pistolas e brandindo facas, de Hic-Milier a lady Macbeth, passando por Lizzie Borden e a Hedda Gabler, de Ibsen, têm assombrado a nossa sociedade e a imaginação masculina há vários séculos. Alguns psicanalistas chegam a denominá-las mulheres fálicas, por uma analogia óbvia com os homens fálicos do jargão freudiano. A escritora junguiana Toni Wolff também tenta definir essa estrutura específica de personalidade feminina quando esboça a psicologia da mulher “Amazona” como um de seus quatro tipos. Os outros tipos – Mãe, Hetera, Medial – correspondem de perto às descrições de Deméter, Afrodite e Perséfone, mas encontramos uma certa dificuldade nos retratos que ela faz da mulher-Amazona, que tanto poderia ser Atena, Ártemis ou Hera. Toni Wolff também considerou o seu termo “Amazona” um tanto enganador, e esta tem sido a reação de muitas mulheres contemporâneas à sua obra. É por isso que achamos mais proveitoso subdividir o tipo de Amazona em Atena, Ártemis e Hera. uma vez feito isso, vemos que as três possuem qualidades fálicas distintivas – Atena é intelectualmente agressiva, Ártemis durona e independente, Hera sem rodeios e dotada de uma vontade férrea – embora claramente exerçam essa falicidade de maneiras diferentes e em esferas distintas.
  • Com Hera, cujas principais preocupações são parceria e poder, a falicidade pode facilmente vir a lhe criar graves problemas de relacionamento. Como, via de regra, seu impulso fálico é frustrado por uma parceria desigual, ela poderá ter a sua psique gravemente desequilibrada e acabar sendo impelida por justamente aquilo que deseja controlar. Os junguianos denominam este difícil e aflitivo estado de “possessão do animus“, quando o lado masculino frustrado de uma mulher, de maneira crítica e destrutiva, assume controle de vários aspectos de sua vida íntima.
    • “Seu aspecto negativo é como de uma irmã que, impelida pelo “protesto masculino”, deseja ser igual ao irmão, que não reconhecerá nenhuma autoridade ou superioridade, [...] que luta empregando armas exclusivamente masculinas e é uma Megera [uma das Fúrias ou Eríneas] em casa. [...] Complicações pessoais são resolvidas de uma maneira “masculina”, ou então reprimidas. Compreensão de – ou paciência com – tudo que ainda não desabrochou, que está no processo de desabrochar ou que não deu certo está ausente, seja no que diz respeito a ela própria ou a outros (“Mal posso esperar até que meus filhos estejam crescidos”). O casamento e os relacionamentos são vistos sob a ótica da realização pessoal (basicamente, da sua realização pessoal); sucesso e eficiência são as suas palavras de ordem. A Amazona também corre o risco de abusar dos relacionamentos humanos, utilizando-os como “transações profissionais” ou para a sua “carreira.”(Structural Forms of the Feminine Psyche, p. 8, Toni Wolff)
  • A chaga de Hera: a dor da impotência. Hera sente ciúmes da liberdade que seu marido tem de ser uma força propulsora e uma pessoa-chave no mundo. Bem no fundo, ela quer viver e agir exatamente como um homem num mundo de homens. Quando o mundo dos homens sob a forma do seu companheiro mais íntimo a rejeita, isso é sentido como uma profunda chaga narcísica em sua auto-estima, uma chaga em torno da qual mágoas, ressentimentos e ciúmes quase inevitavelmente se acumulam. Hera, que se vê então forçada a permanecer em casa, tem poucas oportunidades para desenvolver os seus dotes sociais, políticos e executivos. Como reação, a primeira coisa que faz é apegar-se possessivamente ao marido, fazendo dela a fonte de sua própria politicagem vicária, exigindo ser a sua única confidente, por menos realista que isso geralmente seja. Todavia, se as suas ambições forem realmente fortes, ela jamais ficará satisfeita apenas com isso, e irá espezinhá-lo para obter informações e opiniões sobre seus colegas e sobre suas decisões de trabalho. Isso será uma fonte constante de atrito entre os dois, por mais solidário e generoso que o marido possa tentar ser.
  • Inevitavelmente, a esposa-Hera, ambiciosa mas presa ao lar, que tentar viver através do marido acabará se sentindo excluída. O seu lado fálico foi frustrado e repudiado. Em sua necessidade de estar próxima do marido, ela inconscientemente exige uma intimidade quase simbiótica; é como se quisesse estar na própria pele dele. Para a maioria dos homens, uma tal penetração psíquica por parte da energia de uma mulher é intolerável. Começa a trazer à tona profundos medos infantis do poder avassalador daquilo que os psicanalistas chamam “mãe devoradora”. (…)
  • Rejeitada, desprezada pelo marido e frustrada, a mulher-Hera geralmente se voltará para a família. Aqui ao menos ela parece ter poder absoluto. Todavia, para a infelicidade de todos, com exceção das raras estruturas familiares que preservaram o papel tradicional da matriarca, Hera tende a sentir-se profundamente infeliz quando transforma o cenário familiar no único pólo de suas ambições soberanas. Mais casamentos naufragam e mais famílias são tiranizadas por Heras insatisfeitas ou machucadas do que por qualquer outra deusa. E mais mães alcoólatras, violentas e psicóticas são encontradas entre essas mulheres-Hera profundamente frustradas.
    • Pois uma mulher-Hera simplesmente não é capaz de deleitar-se tranquilamente com os seus bebês ou com o crescimento dos filhos à maneira de uma mulher-Deméter, mulher-Ártemis ou mulher-Afrodite. A forma de maternidade de hera pode ser bastante ríspida e, se recebeu pouca ou nenhuma dose de Deméter, Ártemis ou Afrodite da sua mãe, ela educará os filhos a se sentirem oprimidos e criticados, como se de algum modo jamais conseguissem ser suficientemente bons. Quando uma mulher é mãe exclusivamente através do arquétipo de Hera, sem o apoio da energia das outras deusas, é problema na certa.
  • Hera e suas filhas: Se existe algum tema que caracteriza fortemente a geração de mulheres que têm hoje entre trinta e cinquenta anos, é a profunda alienação que sentem em relação às suas mães. (…) Inevitavelmente, boa parte do que essas filhas têm a dizer sobre as suas mães é carregada de uma grande dose de raiva – revelando assim muito sobre elas próprias e sobre a psicologia de suas mães-Hera. Pois, sob muito aspectos, essas filhas lutaram, e ainda lutam – para se libertarem dos padrões restritivos de feminilidade que suas mães lhes impingiram. Elas têm de pagar um preço elevadíssimo pela sua liberdade. Como filhas, parecem fadadas a carregar dentro de si os resíduos das frustrações maternas – frustrações agora já transformadas em ressentimento, doença e, muitas vezes, em mal-disfarçada inveja.
  • Hera e seus filhos homens: Quando uma mulher-Hera tem filhos, o problema do seu desequilíbrio masculino é ainda mais pronunciado do que com suas filhas. Todo o excesso de energia fálica que não pôde encontrar expressão no mundo exterior, ou através do marido, será desviado para os filhos homens, que logo se tornam a expressão deslocada e a personificação viva da inquieta energia masculina da mãe. Muitos filhos adolescentes partem para o mundo com toda espécie de ambições que nem por um instante duvidam que não sejam suas, mas que na realidade são se sua mãe. Em não poucas ocasiões, por causa das profundas tensões não-resolvidas entre esposa e marido, as ambições juvenis do rapaz irão contrariar radicalmente o que seu pai deseja para ele, que passa a ser usado inconscientemente como peão na luta pelo poder entre o pai e a mãe.
  • A vida não-vivida de Hera: Quando uma mulher-Hera busca ajuda psicoterapêutica porque o marido está tendo um caso com outra mulher, ela naturalmente terá muita dor e muita raiva justificável para examinar. Quando a pergunta é sobre “a outra”, nota-se que ela pensa saber muito a respeito, mesmo quando só tem as mais fragmentárias informações reais em que se basear. Extrovertida e certa do seu próprio sendo de justiça, ela acredita que sua opinião é objetivamente justificada, e assim acaba revelando muito sobre sus fantasias pessoais acerca do caráter de Afrodite, pois projeta-as na sua rival. Embora lhe seja difícil e penoso, ela poderá se beneficiar muito aceitando que este é, de fato, o seu lado Afrodite, com o qual talvez esteja se deparando pela primeira vez.
  • O ideal de Hera que os gregos celebravam em épocas matriarcais anteriores era uma mulher completa, íntegra, não a prioridade agrilhoada de um senhor patriarcal que as esposas gregas se tornaram. (…) Toda mulher-Hera quer ser respeitada e amada como uma mulher completa. E, vagamente, ela também sabe que o caminho que o homem, o outro a quem ama, tem que ser o espelho da sua própria inteireza. De modo que, para a união de ambos ter um mínimo de chance de dar certo, ela sabe que precisa ser capaz de exigir do parceiro o mais absoluto respeito por ela enquanto pessoa adulta madura, de plena posse de todo o poder e de toda a dignidade como mulher – não como criança, objeto amoroso ou clone feminino dos ideais masculinos. Poucos homens são suficientemente seguros em sua masculinidade para complementar e equilibrar exigências deste porte numa mulher. O medo de não suportar o poder feminino maduro está por trás de toda a dominação e submissão patriarcal das mulheres, desde antes dos gregos.
    • Mas o notável desta imagem antiga do Matrimônio Sagrado é que não requer que o arquétipo feminino seja superior ao masculino ou que o domine – notável porque, de fato, existem na era matriarcal muitas imagens do consorte masculino como um simples adolescente sacrificado ao poder maior da Deusa-Mãe. No culto mais antigo do casamento Zeus-Hera, encontramos uma imagem de verdadeira igualdade e mutualidade na troca e fusão das energias cósmicas masculinas e femininas que simboliza: esta imagem podemos tomar como modelo para o casamento humano.
    • Quando uma mulher-Hera não sucumbe ao ciúme e à destrutividade, e se sente confiantemente íntegra em si mesma, ela está pronta para desafiar e conhecer um homem nos termos do seu próprio poder. Se ele for capaz de a conhecer com a mesma confiança na sua masculinidade, poderá ocorrer a verdadeira união Zeus-Hera em sua forma original e incorrupta. A divisão de poder num relacionamento conjugal de indivíduos tão igualmente fortes nunca é fácil ou tranquila, considerando-se os grandes egos envolvidos. Mas nós acreditamos que ainda seja possível hoje, apesar da distorção patriarcal deste arquétipo do casamento, à medida que as mulheres forem cada vez mais assumindo a sua verdadeira dignidade e igualdade.
 
 
por Luciáurea Káha

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

A Deusa Grega na Mulher Humana: O Arquétipo da Mulher-Perséfone

Perséfone: médium, mística e soberana dos mortos

O mito do sequestro
A versão mais completa da história de como a donzela Perséfone foi raptada e levada para o mundo avernal está nos Hinos Homéricos, uma das mais antigas fontes de mitos gregos de que dispomos. (Hades, “o filho de Cronos de muitos nomes”, é aqui também chamado de Aidoeus):
Hades rapta PerséfoneComeço minha canção da santa deusa, Deméter dos cabelos louros, e de sua filha de tornozelos finos, a quem Aiodeus arrebatou e levou embora; e Zeus, de estrondosa como trovão, permitiu que assim fosse. Brincava com as filhas seiudas de Oceano, longe de Deméter da arma dourada e fruto glorioso, colhendo flores pela vicejante campina – rosa, açafrões, violetas, íris, jacintos e um narciso, armadilha plantada para a florescente donzela pela Terra (Gaia) conforme os planos de Zeus e um favor para Hades, de muitos o anfitrião. Jacinto, radiante e magnífico, inspirava maravilha em quem o contemplasse, fosse deus imortal ou homem mortal; uma centena de talos crescia de sua raiz; e todo o céu acima, e toda a terra, e as ondas de sal no mar, sorriam e regozijaram-se com a sua fragrância. A menina deixou-se encantar, e esticou ambas as mãos para colher aquele deleitoso brinquedo, quando subitamente a terra se abriu ao longo da planície. E de lá o amo e Senhor de muitos, o filho de Cronos de muitos nomes, arremessou-se das profundezas para longe em sua carruagem dourada. A menina ergueu a voz num clamor, chamando o bondoso e todo-poderoso pai Zeus. Mas ninguém, nem deus nem mortal, ouviu sua voz, nem mesmo as oliveiras e seus frutos esplêndidos, senão a pequenina filha de Perses, Hécate, a do véu reluzente, que – de sua caverna – ouviu, e também Helios, senhor, glorioso filho de Hipérion, enquanto a donzela clamava por seu pai Zeus, que estava sentado, longe dos outros deuses, em seu muito solicitado templo, recebendo finos sacrifícios dos mortais.
Contra a vontade da menina mas com a aprovação de Zeus, ele a levou para longe em seus cavalos imortais, o filho de Cronos de muitos nomes, irmão de seu pai, designador de muitos, de muitos anfitrião. Enquanto a deusa ainda enxergava a terra e o céu estrelado, as correntes do mar cheio de peixes e os raios do sol, manteve a esperança de ser vista por usa bendita mãe e pela raça dos deuses imortais, e grande era a esperança em seu coração apesar da angústia e agonia.

Quem é Perséfone?
uma deusa evanescente

É possível que a mulher-Perséfone não nos impressione particularmente no primeiro encontro. Não que ela seja tímida ou lhe falte presença, e sim mais pela sua modéstia e discrição. Porém, aqui um rosto e uma maneira de ser atraentes, que pareçam nos sorrir e que, via de regra, têm algo de juvenil; uma pessoa simpática e aparentemente ansiosa por agradar, tendo em si um encanto distintivo, ainda que não seja o fascínio reluzente de uma mulher-Afrodite nem o calor natural de uma Deméter.
De algum modo, a mulher-Perséfone não parece interessada em se afirmar muito intensamente. Ela não possui a solidez de propósito de uma Ártemis, aquela velada disponibilidade de partir para alguma outra parte. E nem conta com o terreno firme da imperiosidade de Hera ou a genuinidade intelectual de Atena.
Há uma peculiar insubstancialidade na mulher-Perséfone, uma qualidade que nada tem que ver com seu corpo. Uma parte dela, podemos até pressentir, está em outro lugar. Todavia, ao mesmo tempo, ela é tão intuitivamente “ligada” que aprece estar presente até mesmo em nossos pensamentos.
Algumas mulheres-Perséfone exibem uma qualidade quase transparente, uma espécie de vulnerabilidade espiritual. No entanto, apesar disso tudo, não há um tipo físico que caracterize uma mulher-Perséfone. Uma poderá ser magra, franzina mesmo, enquanto outra pode igualmente ser gorda e não dar importância ao corpo. Não podemos deixar de suspeitar que ela se sente pouco à vontade com seu corpo e, possivelmente, com sua sexualidade. E, contudo, ela não optou pelo caminho intelectual independente de Atena nem pelo caminho da ação de Ártemis para compensar. Em sua fragilidade, nós pressentimos um anseio por afeição e intimidade profunda, embora seja difícil dizer se é a intimidade do espírito ou do corpo que ela realmente deseja.
Já começamos a pressentir a aura de mistério que envolve a mulher-Perséfone, o seu elo oculto com o espírito e sua profunda ambivalência em relação a um mundo que poderá deliberadamente interpretá-la mal. Talvez, se observarmos mais de perto, o seu exterior encantador não é mais que isso, uma exterioridade sutilmente concebida para proteger e ocultar uma intensa interioridade.
O poeta E. E. Cummings escreveu um lindo poema que evoca o mistério esquivo por debaixo da máscara da mulher-Perséfone:
em algum lugar onde nunca estive, de bom grado além
de toda experiência, seus olhos têm o seu próprio silêncio;
em seu mais frágil gesto há coisas que me envolvem,
ou que não posso tocar por estarem próximas demais
seu mais singelo olhar facilmente me desvela
embora eu tenha me fechado como dedos,
você abre pétala por pétala a mim como abre a primavera
(tocando habilmente, misteriosamente) a sua primeira roa…
nada o que haveremos de perceber neste mundo iguala
o poder da sua intensa fragilidade…
Se Cummings estava descrevendo uma mulher-Perséfone real ou contemplando a sua própria Perséfone interior no rosto de alguma mulher, não é importante (ambas podem coincidir nesse momento). O que o seu poema maravilhosamente graciosos põe em relvo é a sutil dissolução do “eu” e do “outro” num estado quase místico de fusão. E precisamente esta perda do eu, que se assemelha a um transe, que é tão sugestiva do segredo de Perséfone, da sua incomum capacidade de permanecer no limiar ou de adentrar domínios da consciência psíquica.
A mulher-Perséfone, portanto, contata que precisa verdadeiramente viver nos limites do conhecido, próximo daquelas regiões que nós descrevemos com prefixos e latinos como para-, meta- super- ou sobre-, todos eles significando “além de” ou “transcendendo a”. O seu mundo é paranormal e a estrutura de sua consciência é objeto de parapsicologia, uma ciência que estuda as regiões-limite “além” da psicologia normal ou convencional. Da mesna forma, será atraída pelos ensinamentos da metafísica mais do que pelos das ciências naturais convencionais.
É precisamente porque Perséfone habita as fronteiras do cientificamente conhecido que ela se sente alienada e insegura de si mesma. (…)

Perséfone, a mulher medial

PersefonePara os gregos, Perséfone era a Rainha distante do Mundo Avernal, que vigiava as almas dos falecidos, as sombras. Mas ela era conhecida também como a virgem, a donzela – Coré – que foi sequestrada de sua mãe Deméter. Sua descida ao mundo avernal ao ser raptada por Hades é uma das histórias mais conhecidas de toda a mitologia grega.
(…) Como já vimos, o caráter da mulher-Perséfone não é nada fácil de entender. Muitas mulheres-Perséfone são altamente reservadas e, muitas vezes, reclusas. O desgaste psíquico de permanecer em meio às pessoas e à agitação dos mercados frequentemente faz com que elas se retirem do cenário social e tentem se manter, apesar das dificuldades, à margem da sociedade. Essas mulheres precisam de muito tempo sozinhas, levando a cabo seus projetos secretos, suas reflexões, sua comunhão com o mundo invisível. Isso é o que significa viver a maior parte de sua vida no mundo avernal, entre os espíritos.
Hoje em dia, cada vez mais Peréfones latentes têm buscado a literatura esotérica, as formas alternativas de cura e o que se chama vagamente de ensinamentos da Nova Era. De modo que, mais do que nunca, é oportuno penetrar mais na história velada de Perséfone, rainha e co-regente do mundo do além-túmulo. Acreditamos que o seu mito tem muito a dizer às mulheres modernas que se esforçam para compreender toda especie de intrigantes experiências “psíquicas” na natureza ou que, de uma forma ou de outra, são atraídas a trabalhar com a morte ou sofreram grandes tragédias pessoais em suas vidas.
Muitas coisas apontam para o fato de a mulher-Perséfone ser dotada daquilo que Toni Wolff, a colaboradora mais próxima de Jung, sagazmente identificou em 1951 como “personalidade mediúnica ou medial”. Eis como Wolff a descreve:
A mulher medial está imersa na atmosfera psíquica do ambiente em que vive e no espírito da sua época, mas sobretudo no inconsciente coletivo (impessoal). O inconsciente, ao ser constelado [isto é, quando suas formas começam a se delinear] e puder se tornar consciente, exerce um efeito. Esse efeito prevalece sobre a mulher medial, que é absorvida e moldada por ela (e chega às vezes a representá-lo). Ela precisa, por exemplo, exprimir ou representar aquilo que “está no ar”, aquilo que o seu ambiente não pode ou não quer admitir mas que, não obstante, é parte dele. Trata-se sobretudo do aspecto sombrio de uma situação ou ideia predominante – e desse modo ela ativa o que é negativo e perigoso, tornando-se assim a portadora do mal, ainda que o que faça seja exclusivamente um problema pessoal seu.
“Structural Fomrs of the Feminine Psyche”, p.9
Como mulher medial, a maior dificuldade de Perséfone é que, via de regra, ela tem uma estrutura frágil de ego – ao contrário de Atena, Ártemis e Hera, a quem Wolff chama conjuntamente de tipo “Amazona”. A mulher-Perséfone é, portanto, facilmente suscetível a ser sobrepujada quando conteúdos vindos “do lado de lá”, isto é, da sua mente inconsciente (e que seriam tradicionalmente denominados “espíritos”), a avassalam:
Como os conteúdos em questão são inconscientes, ela carece da faculdade necessária da discriminação para poder percebê-los, e da linguagem para poder expressá-los adequadamente. A força avassaladora do inconsciente coletivo perpassa pelo ego da mulher medial, e o enfraquece. (Ibid.)
Quando tem um pouco de força do ego e da capacidade de discriminar de Atena ou Hera, ela consegue formular ou transmitir adequadamente esses conteúdos. E então, como observa Wolff, tem um papel importante e criativo a desempenhar na sociedade:
Nesse caso, ela se consagra ao serviço de um novo, e talvez ainda oculto espírito da sua época – como os primeiros mártires cristãos [ou] as místicas da Idade Média. [...] Em vez de se identificar com os conteúdos do inconsciente coletivo – bastante desvinculados da realidade – ela deveria considerar a sua faculdade medial como um instrumento e receptáculo desses conteúdos. As mulheres mediais tinham em culturas anteriores uma função social como videntes, ialorixás ou xamãs – e ainda a têm entre os povos primitivos (pp. 9-10)
Pouco foi acrescentado à literatura da psicologia de Perséfone desde o que Toni Wolff escreveu em 1951. Contudo, como aumentou a nossa compreensão da consciência das deusas, certamente é chegada a hora de examinarmos mais a fundo a sua visão singular das coisas.

Outros aspectos

    persefone4
  • O mito descreve vividamente como a inocente donzela Perséfone estava brincando certo dia com todas as filhas de oceano, incluindo Atena e Ártemis, quando de repente a terra se abriu e o grande Senhor da Morte, Hades, surgiu em sua carruagem e arrastou-a, aos berros, para o mundo avernal a fim de casar-se com ela.
  • O que é o mundo avernal? Na linguagem da psicologia moderna, seria chamado de inconsciente. De modo que Perséfone á aquela que foi sorvida não apenas pelo inconsciente, pelo desconhecido, por tudo o que é reprimido e sombrio (Freud), mas ainda mais profundamente pelo inconsciente coletivo, o mundo das potestades e poderes arquetípicos (Jung).
  • Uma jovem mulher pode vivenciar isso de diversas maneiras. alguma tragédia de infância poderá fazê-la mergulhar num estado de depressão, de retraimento meditativo, atendo-se interiormente a pensamentos do ente querido que morreu. Em segredo, ela poderá fantasiar que se encontra com a pessoa falecida ao visitar um cemitério, quando então é levada para algum mundo espiritual subterrâneo.
  • Na realidade, depressão e retraimento, acompanhados ou não de fantasias suicidas, podem seguir-se a uma grande perda, separação ou trauma violento em qualquer idade. De modo que a descida ao mundo avernal não é restrita à infância. Podemos ser atraídos ao domínio tenebroso de Perséfone após um divórcio, uma mudança não desejada para algum lugar distante, um aborto, a perda de um emprego, algum trauma severo ou quando somos a única pessoa a sobreviver a um acidente de automóvel. A perda é, afinal, exatamente isso: o sentir arrancada de si a energia da imagem de alguma pessoa, lugar ou modo de vida amado, que é substituída por um enorme, ermo, vazio emocional. Freud caracterizou toda depressão como um tipo de luto pela perda de algum objeto amado.
  • O desaparecimento de um objeto amado num grande, ermo e oco vazio é descrito em uma linguagem simbólica expressiva como a descida ao mundo avernal. O que é reconfortante sobre o mito de Perséfone é haver uma figura guardiã que rege estes períodos terríveis de perda de energia e que nos protege, por assim dizer, até estarmos prontos para voltar à vida normal cotidiana. Metaforicamente falando, toda a energia vital que perdemos durante a depressão, a dor ou o desgosto de qualquer espécie, “foi para o mundo avernal”. É como nós às vezes dizemos a alguma cliente desgostosa, uma parte de nós sempre acompanha a pessoa ou coisa que amávamos ao mundo avernal, que deixa de estar plenamente disponível para a vida normal. temos de respeitar esse processo em vez de tentar nos alegrar artificialmente.
  • A mulher cuja vida inteira se torna completamente identificada com Perséfone em geral sofreu algum trauma particularmente severo, muitas vezes na primeira infância, que tinge de maneira indelével sua postura psíquica perante a vida. Tragédia desmesurada, associada a uma excessiva sensibilidade e a um ego frágil, pode propiciar o modelo em que a jovem é arrastada com tal impetuosidade para o mundo avernal que ela se sente forçada, ou assim parece, a permanecer a maior parte da vida lá. A estrutura mítica refere-se aqui não mais a uma depressão temporária, mas a uma constituição crônica de consciência dupla ou dividida.
  • Esta jovem ou mulher será claramente uma iniciada muito relutante nos domínios sombrios da psique. Tudo acontece depressa demais, espontaneamente demais, como que indo do nada. Sentindo-se totalmente impotente, ela descobre que precisa aprender a viver em dois mundos radicalmente diferentes: o mundo da vida e da luz representado pela mãe, Deméter; e o mundo das sombras e da morte, representado por Hades. E assim ela se vê dividida em suas lealdades, em sua autoridade sobre si mesma e em sua visão das coisas. Ela é capaz de enxergar os dois mundos: aquilo que pode ser revelado e aquilo que deve permanecer secreto. Ela tem de ser leal para com os vivos e os mortos. É um fardo tremendo, uma responsabilidade momentosa que é sua e somente sua.
  • Para a mulher-Perséfone, sempre há algum elemento de tragédia logo cedo na vida que a afasta à força do mundo inocente dos folguedos com suas irmãs Atena e Ártemis. Pode ser a perda precoce do pai ou da mãe, abuso sexual quando criança, alguma doença grave, pai ou mãe alcoólatra ou esquizofrênico, ou mesmo ter nascido de um parto excepcionalmente difícil. Nunca há simplesmente causas, e sim eventos que antecipam a descida ao mundo dos mortos que a jovem Perséfone parece fadada a empreender mais cedo ou mais tarde.
  • Quando uma mulher se identifica demais com Perséfone à exclusão de todas as outras deusas, será invariavelmente atraída a situações em que ela ou alguém acaba saindo machucado. Poderá vir a sofrer acidentes ou misteriosas enfermidades que a tornam dependente da assistência governamental. Poderá acabar inevitavelmente cuidando de sus pais enfermos ou moribundos. Poderá atrair para si homens encantadores, mas brutais e intimidadores, dos quais não conseguirá escapar. nada disso é obra sua. Parece surgir do nada, de maneira implacável, esmagadora, inexplicável.
  • A noite escura da alma: o que Perséfone não logrou compreender é que a vítima dentro dela realmente precisa ser sacrificada e contrair núpcias com os poderes escuros. A palavra sacrifício não significa apenas renunciar ou abandonar, no sentido de perder algo, mas literalmente “tornar sacro” [sacrum facere]. Toda dor, raiva e mágoa precisam ser oferecidas para forças que estão além de si. O chamado de Perséfone é um chamamento sagrado, uma vida que pertence, não a ela, mas à deusa e ao seu consorte no mundo avernal.
  • Quer queira, quer não, a mulher-Perséfone foi chamada a renunciar à sua inocência de donzela e a dedicar uma grande parcela de sua vida entrando e saindo do mundo avernal. Via de regra, ela fará isso como auxiliar ou guia de outros. Por ter estado lá, por ter visto os lados mais tenebrosos do sofrimento humano, e ter sobrevivido, ela se torna um facho de luz.
  • A Perséfone madura que retornou de sua jornada vive de algum modo além do mundo comum, ainda que permaneça em íntimo contato com ele. Ela tornou-se uma feiticeira, isto é, uma mulher sábia que “já viu tudo” e que, portanto, pode mostrar-se sempre alegre e bem-humorada, achando sardonicamente divertida a loucura humana. Em sua forma completa, ela reúne em si o início e o fim do ciclo da vida, o nascimento e a morte. De maneira que, mesmo quando anciã, ainda preserva a própria juventude; e, como uma jovem iniciada, traz consigo a jubilosa sabedoria dos anos.
 
 
Por Simone Luciaurea.