Um excerto do livro “A Deusa Interior“, de Jennifer Barker Woolger e Roger J. Woolger
Afrodite: áurea deusa do amor
O nascimento de Afrodite
O mais conhecido mito grego do nascimento de Afrodite ostenta, inevitavelmente, uma ótica paternalista, e mostra a deusa nascida dos órgãos genitais cortados de Ouranos, o deus do céu. O vento nada perdeu do seu esplendor e poesia, como revela o resumo abaixo:
Na época da criação dos primeiros deuses, Gaia, a Mãe Terra, e Ouranos, o Pai Celeste, haviam dado à luz muitos filhos divinos. Dentre os últimos a nascer estavam os Titãs, filhos monstruosos que odiavam o pai. De modo que Ouranos lançava-os de volta à pobre Gaia cada vez que um surgia.Finalmente, um dos filhos mais jovens, Cronos, que também odiava o pai, voltou-se contra Ouranos e castrou-o com uma foice de pedra que Gaia fizera especialmente para castigar seu cruel companheiro. Sem atinar, Cronos lançou então o membro decepado por sobre os ombros, e este caiu por terra. Das gotas ensanguentadas brotaram as Fúrias e os Gigantes, mas o membro genital caiu em tormentoso mar, onde foi carregado pelas ondas.Da espuma que se formou em torno do pênis decepado foi crescendo uma menina. Ela foi primeiro levada pelo mar até Citera, e depois para Chipre, sempre envolta pelas ondas. Lá a linda deusa aportou com seus dois companheiros, Eros, cujo nome significa Amor, e Himeros, cujo nome significa Desejo. Quando tocou terra firme, a relva brotou debaixo de seus pés. Seu nome para os mortais era Afrodite, que significa “nascida da espuma”.
Afrodite também é conhecida como philommedes, “aquela que ama o riso”, urania, “a celestial”, e pandemos, “A que pertence a todos”. Diz-se que ela se apraz nos sussurros das meninas, em sorrisos, em enganos e em todo doce deleite e encanto do amor.
No Olimpo foi recebida por todos os outros deuses e deusas, e lá rege todos os atos de procriação e todos os aspectos das artes do amor e da beleza.
Adaptado da Teogonia, de Hesíodo, 176-206.
Afrodite: deusa de todas as pessoas
Nenhuma deusa foi tão bem amada quanto a própria deusa do amor, Vênus-Afrodite. E nenhuma outra deusa foi tão bem representada em todas as artes. Desde que surgiu da espuma das ondas na célere concha de vieira, artistas a pintaram e esculpiram, poetas exaltaram sua beleza, e cancionistas compuseram melodias em sua honra.
Os gregos e os romanos adoravam-na pela sua gloriosa beleza, pela sua ternura e pelas suas muitas aventuras amorosas. Seu filho divino igualmente belo, Eros – o deus romano Amor ou Cupido – foi por muitos considerado a personificação do maior dom já concebido à humanidade. (…) Afrodite naturalmente ocupava um lugar respeitado no Olimpo, embora Hera, guardiã ciumenta, fosse implacavelmente contra o seu comportamento sexual licencioso.
Em nossa época, Afrodite dá toda a impressão de ter trocado o Olimpo por Hollywood. É como se nestas últimas gerações algumas grandes beldades da tela – Greta Garbo, Marilyn Monroe, Elizabeth Taylor – houvessem efetivamente encarnado a deusa. A vida pública dessas atrizes chegou até mesmo a adquirir uma certa qualidade mítica: o misterioso retiro de Garbo, a morte trágica de Monroe, o relacionamento épico de Taylor com Richard Burton são apenas alguns exemplos.
Mas o culto a Afrodite não se restringe a Hollywood. Ela é celebrada em toda parte, Afrodite pandemos, como os gregos a chamavam – deusa “em meio a todas as pessoas”. Diariamente as novelas de televisão, os romances edulcorados vendidos em banca de jornal e os traficantes de escândalos políticos revivem as suas histórias imemoriais de paixões secretas, ciúmes e inveja, e traição. Os sexólogos da nação computam seus múltiplos orgasmos e mapeiam os seus excessos. As revistas de moda têm uma queda por ela, enquanto as revistas masculinas glorificam a sua nudez. Pornógrafos e cafetões exploram-na inescrupulosamente.
Nunca uma deusa foi tão íntima e tão pública ao mesmo tempo! Mas terá sido sempre assim? Foi assim na Grécia antiga?
Certamente não. Os gregos não tinham os meios de comunicação de massa atiçando um anseio natural quase ao ponto da histeria. Eles preservavam um forte sentido da sexualidade como um dom sagrado, não um bem a ser explorado, e é por isso que reverenciavam Afrodite. É somente o mundo moderno que está tão obcecado com os encantos físicos da deusa, que quase perdeu contato com a sua dimensão sagrada. (…)
Na sua forma mais radiante, Afrodite tem muitos “dons áureos” a nos conferir. As mulheres nascidas sob a sua influência naturalmente apreciam a sexualidade e a beleza como qualidades sagradas. As mulheres-Afrodite têm um magnífico faro para esse tipo de educação íntima que só pode ocorrer no boudoir. Como iniciadora dos salões, Afrodite excedeu-se em civilizar a rude e grosseira energia masculina.
Afrodite era e é, em tudo, uma presença sensual. Para os gregos antigos, ela era a “deusa áurea”. Como um sol glorioso, ela brilhava sobre aquela cultura precoce abençoando-a com as artes da escultura, poesia e música. Nada lhe dá maior deleite do que a gratificação dos sentidos através do belo. Ela adora roupas finas, cabelos respelandecentes e esvoaçantes, jóias e adornos de todos os tipos. É por isso que as primeiras estátuas gregas da deusa mostravam-na vestida com atavios suntuosos. hoje ela domina a indústria da moda, dos cosméticos e o mundo requintado e glamouroso da de revistas como Vogue.
A infância de uma Afrodite moderna pode ser marcada por infindáveis brincadeiras de vestir e desfilar – ela pode até tornar-se modelo infantil, pois é por natureza uma exibicionista. Com seu sentido estético inato, poderá mais tarde tornar-se modelo de moda, atriz, hostess ou decoradora de interiores. ou poderá acabar na mídia, onde será uma boa repórter ou entrevistadora, dado seu interesse extrovertido pelas pessoas. Todavia, qualquer que seja o seu trabalho, estará inevitavelmente ligado a grupos de pessoas – seja um escritório movimentado, uma loja ou uma empresa – em que sua habilidade natural de relacionar-se com as pessoas, seus magnetismo, seu charme e seu encanto logo atraem a atenção dos patrões.
Carl Jung definiu Eros no seu contexto humano mais generalizado como a capacidade de relacionar-se, a qualidade de ligar-se aos outros. Temos assim outra pista essencial da natureza da mulher-Afrodite: por mais importante que a sexualidade seja para ela, sempre será parte integrante de um relacionamento, nunca um fim em si mesma. é a ligação pessoal com o companheiro ou amante, a troca de prazer entre ambos, que torna o sexo algo tão extático para ela.
A capacidade de relacionar-se, o que vale dizer, tudo o que um relacionamento envolve, é fundamental para entendermos a mulher-Afrodite. Não importa se a conhecemos uma hora atrás ou por toda a vida, ela quer que sejamos inteiramente, sensivelmente e humanamente presentes – que estejamos nos relacionando. Isso é tão importante para Afrodite quanto a clareza mental é para Atena ou os cânones morais são para Hera. Se não houver relacionamento, ela vai se definhando ou perdendo o interesse.
Acima de tudo, Afrodite quer que os relacionamentos sejam amorosos – não importa se amigáveis, sociais, físicos ou espirituais; ela quer que tenham coração. Uma verdadeira mulher-Afrodite não dá a mínima para as exigências sociais de um “bom casamento” que Hera, sua rival, gostaria de ter. E considera o acalentador amor maternal de Deméter um pouco unilateral demais. Quanto ao platônico “casamento de mentes verdadeiras” de Atena, é excessivamente mental.
Com seu ardor instintivo, a mulher-Afrodite dá-se bem com os outros – homens, especialmente, é claro. Sua vida parece ser igualmente regida por encontros e ligações fortuitos e planejada com meticulosidade. As aspirações profissionais de sua irmã Atena provocam-lhe um certo tédio. A oportunidade de um cruzeiro pelo Mediterrâneo pode facilmente levá-la a abandonar a escola – e, para arrematar, ela acabará arranjando ainda algum tipo de emprego pouco usual. Com a sua eroticidade despreocupada, ela pode se revelar bastante oportunista.
Afrodite não está particularmente interessada em casamento e filhos como tal. Quando tiver filhos, será uma mãe afetuosa, generosa e muitas vezes pouco convencional. Mas não fará deles o centro de sua vida, como Deméter. E nem sempre contrairá matrimônio, para escândalo de Hera.
Não, Afrodite raramente quer criar raízes. Pelo contrário, ela tende a ver a vida como uma aventura, e uma aventura com um possível final romântico. ela busca um homem sensual, ativo e desimpedido; de preferência sofisticado, bem instruído e armado com um cartão de crédito e não com uma pistola.
É preciso lembrar que a mulher-Afrodite é essencialmente civilizada e sensual. Acampar nas montanhas do Colorado ou caçar animais selvagens na África não faz o seu gênero, por mais lindo ou rijo ou robusto seja o homem que a convida. As aventuras tempestuosas são para Ártemis, assim como as aventuras políticas solitárias são para Atena. Afrodite quer ter a certeza de um coquetel e roupas de cama limpas para as suas aventuras. É mais fácil encontrar uma Afrodite à beira de uma piscina elegante do que de um lago nas montanhas.
Outros aspectos
- Ser abençoada por Afrodite geralmente significa que a mulher se sentirá plenamente à vontade com o seu corpo e que terá uma relação saudável e descomplicada com a sua sexualidade. Quando garotinha, poderá facilmente chocar sua mãe com uma curiosidade natural sobre o corpo e os órgãos genitais. mais tarde, a despeito das tentativas de incutir nela um mínimo de modéstia, poderá manifestar uma atitude quase casual em relação ao sexo. Ela é, no melhor sentido da palavra, naturalmente pagã.
- Desde o início há algo de muito atraente a seu respeito, embora não seja necessariamente um tipo convencional de beleza. A Deusa, vale lembrar, tem mil maneiras de conferir seus encantos. A criança-Afrodite aprenderá logo cedo a flertar com o pai e, desde que ele não se sinta ameaçado por isso, receberá dele a primeira confirmação positiva de seus encantos. Com tal reforço, poderá começar a praticar suas habilidades em algum ou em todos os amigos dele – deixando-os tremendamente embaraçados! Para ela, porém, é a mera aplicação inocente de um talento erótico nato.
- Quando adolescente, terá de aprender a trazer sob seu controle o que eros florescente que, no mundo moderno, pode e irá colocá-la em toda espécie de dificuldades. Fisicamente, ela amadurece cedo e, como resultado, será forçada a amadurecer cedo também socialmente. Sua beleza e amigável extroversão farão dela um inevitável centro das atenções libidinosas de todos os rapazes à sua volta. E ela naturalmente ficará lisonjeada. Aprenderá rapidamente as regras do namoro, e também como não partir um número grande demais de jovens corações masculinos.
- Longe dos predadores da selva da mídia, a beleza precoce pode ser uma bênção ou maldição para a jovem Afrodite ainda no colégio. Os jovens da sua idade ficarão pasmados diante dela, ao passo que ela os achará imaturos e grosseiros. E logo passará a ser cortejada por admiradores bem mais velhos, podendo rapidamente a vir a sentir-se isolada socialmente de suas colegas.
- Este é um esquema que a mulher-Afrodite irá repetir de diversas maneiras por toda a vida. Sua beleza excepcional pode ser um passaporte instantâneo para outros mundos mais fascinantes; mas com isso sobrevém-lhe uma palpável alienação. Talvez venha a conhecer certa solidão interior, uma sensação de estar fora do seu meio, e colocará toda a sua energia em sua persona exterior, em sua lindíssima máscara, para compensar. Uma vez que tantos homens a desejam apenas por causa de sua aparência, como uma conquista ou símbolo de status, ela muitas vezes chegará a duvidar do seu próprio valor. “Um símbolo sexual é uma coisa, e eu não sou uma coisa”, Marilyn Monroe teria dito. Como a infeliz Marilyn, muitas mulheres-Afrodite poderão sentir-se inseguras em relação a seus outros talentos bastante reais. Tamanha é a pressão externa que ela se esquece de que nenhuma mulher deve ser forçada a ser exclusivamente uma única deusa. Começamos aqui a vislumbrar a chaga de Afrodite.
- Uma das lições mais duras para Afrodite é a de que no mundo moderno ela quase sempre será “a outra” para muitos homens. isso faz parte de um antigo triângulo arquetípico do seu universo, no qual os valores de eros são lançados contra os valores da fidelidade e do casamento – um triângulo no qual ela poderá estar envolvida diversas vezes ao longo da vida.
- A despeito do que a virtuosa Hera possa dizer, a mulher-Afrodite não deve jamais sentir-se envergonhada pelos seus casos secretos, pois estes são muito valiosos num tal relacionamento, ao qual a palavra caso nem de longe faz justiça, ela se mostra uma excepcional confidente, uma amiga espiritual além de sexual. Os homens se sentem atraídos não apenas pela sua beleza física, mas também pela sua sabedoria feminina espontânea no que tange aos assuntos do coração. Afrodite entende as pessoas e, sobretudo, os homens.
- Quando uma mulher-Afrodite se apaixona por um homem criativo ou de muita atividade pública, ela aumentará tremendamente a confiança dele em si mesmo e também o seu potencial de intimidade. Como acrescenta Toni Wolff, o “interesse instintivo [da mulher-Afrodite] é dirigido ao conteúdo do relacionamento em si, e todas as potencialidades e nunces para ela mesma e também para o homem”. De positivo, é óbvio que isso pode ser enormemente benéfico para o desenvolvimento do eros criativo do homem. De negativo, porém, um excesso de eros pode afastar o homem de suas obrigações públicas.
- Depois de uma boa experiência com um amante mais velho, a jovem Afrodite atinge sua maturidade e passa a ter genuína confiança em si mesma. Daí por diante, o poder e a autoridade, os artifícios e artimanhas do mundo masculino cessam de atemorizá-la. Ela já enxergou, de mais de uma maneira, até o âmago disso tudo. E tornou-se testemunha privilegiada de algumas das patifarias mais arcanas deste mundo.
- Porque Afrodite ameaça tanto a sociedade patriarcal: a isca é sempre o fascínio sexual, a que os homens parecem ser totalmente impotentes para resistir. Os gregos racionalizavam a sua paranóia conferindo a Afrodite uma cinta mágica capaz de desarmar todos os homens e deuses que a ameaçassem. Todavia, há algo altamente suspeito nesses exemplos – em todos eles, os homens são apresentados como vítimas. Vítimas de seus próprios sentimentos não admitidos talvez, mas certamente não vítimas efetivas das mulheres. Isso tudo ceira muito a culpa deslocada. Pois se houve algum grupo vitimado no ocidente patriarcal, foram as mulheres.
- A maneira de ser de Afrodite, pela sua própria natureza, não pode senão ocupar um lugar ambíguo e impotente no limiar do mundo patriarcal, onde o máximo que lhe é permitido é ser uma fonte de prazer cheio de culpa para os patriarcas. Os patriarcas são coletivamente, e não individualmente, culpados, por certo, mas são culpados mesmo assim, pois o sistema que herdaram tem despossado e subjugado as mulheres há vários milênios. A consequência mais triste dessa alienação e esbulhamento de Afrodite desde os tempos mais remotos até o presente está na desvalorização do seu maior dom para todos nós: o relacionamento.
- Duas foram as consequências psicológicas de se negar a Afrodite um verdadeiro lugar na cultura do final da Idade Média: a disseminação da neurose sexual e o aparecimento da paranóia com bruxas, [porque] acreditava-se que as bruxas participavam de orgias com o diabo, com quem praticavam todo tipo imaginável de ato sexual. Menos conhecido é que essas histórias provieram todas de “confissões” arrancadas de mulheres inocentes sob torturas atrozes supervisionadas pelo clero celibatário masculino da época. é evidente que, em termos psicológicos, os padrões projetaram todas as sus apavorantes fantasias sexuais reprimidas sobre as mulheres, castigando-as por isso – muitas vezes, com humilhantes torturas sexuais. Nem mesmo os crimes raciais dos nazistas chegaram a equivaler plenamente aos abismos de ódio sexual a que caíram os ditos líderes espirituais do final da Idade Média.
- Boa parte das chagas da mulher-Afrodite decorrem do fato de ela estar alienada das outras deusas. Numa sociedade que costuma hostilizá-la, desaprová-la ou manipulá-la, ela precisa desesperadamente das forças e perspectivas delas. Dotada de uma natureza em que predomina a sensibilidade, ela poderia por exemplo, beneficiar-se um pouco da poderosa capacidade de raciocínio e do pragmatismo profissional de Atena. Se conseguisse superar sua antiquíssima aversão pelos valores de Hera – sossego, estabilidade, fidelidade – Afrodite poderia pedi a ela que a ajudasse a obter respeito social e um lugar mais confortável e seguro no mundo moderno.
- Paixão e compaixão: Afrodite é deusa não apenas da paixão, mas também da compaixão. No Oriente, ela tem uma equivalente muito próxima em Kuan Yin ou Kannon, a deusa que personifica a maior virtude do Buda – a compaixão. mais do que qualquer outra deusa, parece-nos que Afrodite possui, como Buda, uma visão acumulada através do sofrimento, da paciência e da abstenção de revidar. Ela foi rejeitada, abandonada, aviltada; seu coração despedaçou-se tantas vezes que atingiu portentosas proporções na capacidade de amar.
- Um ditado judaico afirma: “Deus quer o coração”. Nada poderia ser mais verdade de Afrodite; dela poderíamos também dizer, “A deusa quer o coração”. Pois o coração simboliza tudo o que é autêntico e verdadeiro em nossas menos defendidas profundezas. E quando dois corações estão abertos um ao outro, a magia de Eros pode então fluir entre eles. Este é o grande dom de Afrodite, a fusão de dois corações em harmonia com a grande fusão sensual de nossos seres físicos. Quando ambos os canais estão abertos, a deusa está verdadeiramente presente em nós.
Por Simone Luciaurea
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